GLAUCOMATOPÉIA [#82]


MANIA DE PALINDROMAR

Ainda nos setenta, enquanto éramos todos "marginais", troquei muita figurinha poética com Braulio Tavares. As pesquisas e experimentações formais não se atinham a gêneros literários (como o limerick ou o cordelismo) e investigavam quaisquer terrenos lingüísticos ou idiomáticos, onde pudéssemos explorar recursos fonéticos ou gráficos. Com saudade relembro como, instigados por Millôr Fernandes, andávamos às voltas com a "snow ball" (que abrasileirávamos para "esnobol") e os palíndromos.

Ultimamente, José Miguel Wisnik anda tão envolvido com essa mania, que até participa de comunidades virtuais entre palindromistas e compõe canções com letras inteiramente mosaicadas desses jogos verbais. O gosto pelo palindromismo tornou-se contagiante a ponto de alguns internautas proporem tópicos exclusivamente dedicados a palíndromos "literários", isto é, alusivos a autores e obras.

Nem todos os resultados são tão lógicos e claros como aqueles mais famosos e correntes que circulam anônima ou apocrifamente (tipo "Ô padre, meu, que merda, pô!" ou "É, de fato, xoxota fede!"), nem tão lapidares e elementares como aquele inglês que imortaliza a frase do primeiro homem sendo apresentado à primeira mulher: "Madam, I'm Adam!" - até porque alguns tentam ser longos demais e perdem o nexo pelo caminho. O mais comum é sair uma frase vagamente sugestiva, entre o cômico e o nonsense, mas sem maior conteúdo estético, como o banal "Socorram-me! Subi no ônibus em Marrocos!", que só se mantém na memória devido ao artifício mnemônico dum topônimo ou antropônimo pitoresco.

Mas, vez por outra, surge alguém mais obstinado, como o poeta Gustavo Silva, que incursiona a fundo no universo lógico (ou paralógico) dessas frases viciosas, buscando conciliar extensão sintética e exatidão sintática. Calejado a ponto de reivindicar para si a autoria do maior palíndromo da língua portuguesa (contendo precisamente 666 letras), o jovem agora se esmera em capturar conceitos cada vez mais completos e coerentes: no caso literário, cada vez mais biográficos, ou fotográficos, para não dizer caricaturais. A meu respeito, por exemplo, Gustavo lavrou dois bastante conseqüentes, que conseguem retratar um Glauco Mattoso homossexual, sadomasoquista e podólatra! Só faltou incluir a cegueira nesse fichamento cabal e cabalístico. Quem me conhece saberá aquilatar se ainda é possível que alguém acerte mais em cheio no olho da mosca:

"Ô, dá-me, Glauco, o cu, algemado!"
"Ué, Matoso: lugar de pé é pedra, guloso! Tá, meu?"

Aproveitando a deixa, colo abaixo um poema que fiz sob encomenda para a revista curitibana OROBORO (editada por Ricardo Corona), imediatamente após ter completado mil sonetos, donde a coincidência do número com o título da composição:


SONETO RODADOR [1001]

Palíndromo perfeito é o "oroboro",
a cobra que devora o próprio rabo.
Com esse talismã começo e acabo
um tema que dos bruxos é namoro.

Porém, como sou falto de decoro
e de ser pornográfico me gabo,
engulo meu caralho, até me enrabo
e rindo dessa dor gozo meu choro.

Assim sempre vivi, juntando extremos,
tirando da agonia meu proveito,
casando maus anjinhos com bons demos.

Erótico e autofágico é o conceito,
portanto, do "oroboro": eis como vemos
a cobra do palíndromo perfeito.

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso
 

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