Coluna de 21/3
(próxima coluna: 21/4)
FOLHEANDO FRED
1- Como todo leitor contumaz sabe, há duas maneiras principais de lidar com livros. Uma é com método e disciplina. Lê-se o livro na seqüência proposta pelo autor e pela editora. A outra, ao contrário, é aleatória. Amiúde, antecede a leitura metódica. É o chamado “folhear”.
2- O procedimento inspirou um libreto de poesia muito interessante, com este título, “Folhear”, produzido e distribuído, em 1982, pelo próprio autor, sumariamente identificado apenas como Fred, embora informasse na folha de rosto seu endereço para correspondência em Copacabana, no Rio de Janeiro. Aliás, bairro no qual adquiri o escrito há muitos anos, das mãos do próprio poeta. Na época nem reparei que o projeto gráfico contava com a participação do grande Samaral, poeta e editor responsável pelo tablóide alternativo “Urbana”, que mais tarde viraria revista. Não reparei, simplesmente porque não conhecia ainda Samaral, o que somente viria a ocorrer no início da década de 90.
3- O livro, com suas 44 páginas grampeadas (22 folhas) lembra o formato de um libreto de cordel, embora possua capa mais espessa que os exemplares típicos da literatura nordestina. Por outro lado, toda semelhança com aquela literatura termina aí e no modo de sua distribuição, pois é a poesia concreta e o experimento poético que predominam no conteúdo de “Folhear”.
4- Sempre me lembro do livro, talvez pela coincidência da presença de Samaral, talvez pela originalidade do projeto gráfico-visual, assinado por Fred, Samaral e Roberto Moreno. E, certamente, pelo fato de ser um exemplar característico da literatura alternativa em seu aspecto mais evidente de resistência e combate político, em pleno duro regime.
5- Sim, porque o título completo da obra expressa as duas partes que a compõem: “Folhear e Outros Poemas”. A primeira, principal e mais vasta, ocupa 30 páginas, consistindo num único poema concreto-experimental, ao mesmo tempo de teor metalingüístico e ecológico. A segunda agrega alguns poemas minimalistas extraídos de dois outros livros. Uma nota miudinha ao final da folha de rosto, força ainda o esclarecimento de minhas cansadas vistas: “(*) Folhear é publicado pela 1ª vez; os “outros” foram extraídos de 2 livrinhos anteriores: Tráfego (jun/81) e Metrópole (set/80), ambos esgotados.”
6 - Bato o olho na nota e me dou conta. Espera aí, também tenho “Metrópole”. Mergulho nas prateleiras ainda não organizadas de modo totalmente satisfatório desde a mais recente mudança. Depois de algumas infrutíferas buscas, encontro por fim. E valeu a pena o esforço, pois agora disponho do nome completo do autor: Frederico Tosta Rezende. Constato que, em 1980, achava-se no mesmo endereço, na Siqueira Campos, em Copacabana.
7 - “Metrópole”, de 1980, é um outro libreto em formato revista, embora um tanto maior, com seus 19,50cm x 14,50cm, contra os 16cm x 11cm de “Folhear”. Puxo pela memória e o cérebro ejeta a ficha de que adquiri “Metrópole” no balcão da extinta “Entrelivros”, em Copacabana. Será ?
8 - “Folhear” é um poema formado a partir da criativa colagem de frases, palavras, sílabas, trechos de poesia, distribuídos em diversos pontos e ângulos das páginas, de um modo que se realça o contraste entre o escrito e o fundo branco. O fato, associado ao título, termina por evidenciar a folha em si. Impossível resistir a folhear o livro, o que inclusive provoca certo efeito de animação nas palavras-imagens.
9- Outro aspecto interessante é a capa, uma criação do talentoso Lapí (Luiz Lapí). É toda preta e sobre esse painel foram escritas, em branco (cor de fundo das folhas do livro), apenas duas palavras: “Folhear” e “Fred”. Porém, com o detalhe de que um único “F” tem a sua linha de base encompridada para que pudesse servir às duas. Isso termina por chamar a atenção para o miolo dos dois vocábulos. Assim, no primeiro caso temos a emersão de um insólito “olhear”, que, curiosamente, sugere uma mistura de olho com folha.
10- No segundo caso, o efeito é também interessante. Com o recurso de usar um único “F” no início de “folhear” e “fred” (em letras minúsculas e bem grossas), criou-se uma metonímia em que obra e autor se confundem. Assim, ao folhear o livro, na verdade estaremos a folhear quem o escreveu. Isto é, estaremos “folheando fred”.
11- Por fim, evidentemente a idéia de “folhear” termina por remeter também à de calendário. E esse é outro aspecto fascinante. A capa foi diagramada para que o livro, ligeiramente aberto, pudesse ser posto em pé, em forma de tenda, lembrando um calendário sobre a mesa. O título fica legível e perfeitamente elegante na posição.
12- A personalização das coisas e a coisificação das pessoas na sociedade ocidental têm sido motivo de debate freqüente em nosso tempo. Trata-se de tema que me é particularmente estimulante. Como se pode depreender, Fred é igualmente atento à questão.
13- Além de sujeito e objeto se confundirem na fusão do elemento livro, conforme vimos antes, a própria redução radical do nome do autor constitui uma dramática forma de denunciar ou de sublinhar o processo de despersonalização do indivíduo. De quebra, sugere ainda a própria condição de quase anonimato, imposta pela cultura oficial àqueles que com ela não se afinem. Assim, o Frederico Tosta Rezende, do “Metrópole” de 1980, minimalizar-se-á em “Fred”, dois anos depois. Diga-se de passagem, já no livro de 80 o nome do autor na capa era apenas Fred, surgindo somente na folha de rosto o nome completo, mais o endereço e a informação de tiragem (mil exemplares, a mesma de “Folhear”). Nenhuma informação adicional é fornecida.
14- Porém, se alguma dúvida quanto à intencionalidade crítico-criativa de tais recursos houvesse, seria dirimida com a leitura do poema “Fred's”, que aparece na página 18 de “Metrópole” e na 40 de “Folhear”:
FRED'S
Na lanchonete-canil
Os cahorros-quentes ladravam
Avançavam na multidão faminta.
(Frederico Tosta Rezende, Fred)
15- Repare-se que aqui não apenas há a coisificação do nome, mas assume-se criticamente sua norte-americanização, como se o autor se fizesse espelho para mostrar a coerção cultural irresistível em que vivemos.
16- Onde andará Fred? O destino não me favoreceu novos encontros com o poeta. Digitei seu nome num buscador da Internet, mas tudo que consegui foi alusivo aos três livros que mencionei. Fica a lembrança positiva das duas obras que pude conhecer.
METRÓPOLE
Geléia de
argamassa
fumaça & alvoroço
Bacante
cheirosa a merda
& sabonete
Estufa dantesca
propícia às paixões
& seus punhais
(Frederico Tosta Rezende, Fred, in Metrópole, p. 05, ed. Autor, Rio de Janeiro, 1980)
Rio de Janeiro, 03 de março de 2005.