"NOZARTE EM BLOCOS", POR RICARDO ALFAYA

Ricardo Alfaya, Rio de Janeiro, 08.08.1953, formado em Direito e Jornalismo, é poeta, contista, cronista, articulista, ensaísta e editor do Nozarte Informativo Impresso e Eletrônico. Blogue: http://nozarte.blig.ig.com.br

Coluna de 21/6
(próxima coluna: 21/7)


DE PÃ, PÃES E POESIA

1- "Padaria Rio Doce (pães, queijos, salgados & delícias)". Este poema, de minha autoria, obteve boa divulgação, graças à sua premiação num concurso literário promovido na Internet pelo site "Poemas Azuis", de Kk Blue, em dezembro de 2000. Por sinal, o trabalho lá se encontra exposto, desde então. Também contribuiu para sua difusão tê-lo registrado logo em seguida no Caderno 29, da Oficina Editores, do Rio de Janeiro. Faço a referência porque, no meu caso, até o presente momento constitui a maneira mais feliz que encontrei de expressar a forte ligação entre pão e poesia. Um elo que sempre percebi existir.

2-  Todavia, longe da pretensão de ter sido o primeiro a sublinhar tal aproximação, reconheço antes o contrário: desde há muito cravou-se em meu imaginário a estreita relação, a partir de outras citações e histórias ouvidas.

3- Por outro lado, pesou para a escolha do tema um fato prosaico: minha esposa, Amelinda Alves, cansada de consumir os falsificados "pães integrais" de supermercado (repletos de conservantes, farinha branca e farelo) resolveu partir, com meu irrestrito apoio, para o experimento culinário.  Munida do tão excelente quanto volumoso "Cozinha Vegetariana; saúde e bom gosto em mais de 670 receitas", assinado pela paulista Caroline Bergerot (Cultrix, São Paulo, 1999, 384 p.), conseguiu produzir com êxito dois gostosos e saudáveis tipos de pães integrais: um de estilo simples, outro de centeio (receitas das páginas 250 e 255, respectivamente).

4- Durante o lanche, comentamos que assim como existe um movimento literário e artístico alternativo, há também propostas alternativas em outros setores. Em particular, na medicina e na alimentação. Sendo que o pão integral constitui um dos principais alimentos desse gênero. Logo, considerei que mais uma vez pão e poesia tinham alguma coisa em comum.

5- Disse "mais uma vez" porque de fato a percepção fora anterior. Na verdade, desde criança notara o caráter especial do pão. A orientação de minha mãe, de formação católica, quanto ao assunto era clara: nenhum pedaço de pão deveria ser jogado fora sem que antes fosse beijado. Um ritual de solicitação de  perdão e de agradecimento, que respeitosamente segui até o fim da infância.

6- O pão aparece no mais belo poema em forma de prece que conheço: o Pai Nosso. Esteve presente em abundância na Bíblia, multiplicando-se para saciar a fome dos homens.

7- No "Curso Clássico" (equivalente ao Segundo Grau, para quem optava no começo dos anos 70 pelas Ciências Sociais) um professor comentara sobre um evento literário em que um gigantesco pão fora servido ao público a título de poema. O episódio mexeu com a minha imaginação juvenil.  Porém, somente muitos anos depois encontraria o registro histórico, no "Vocabulário Técnico de Literatura", de Assis Brasil (Ediouro / Tecnoprint, Rio de Janeiro, 1979, 240 p.). Nele, nas páginas 168 e 169, no verbete "Poema / Processo", vemos a reprodução de um recorte de jornal, datado de 07.04.1970, com a seguinte manchete: "PÃO POEMA-PROCESSO COM DOIS METROS É COMIDO POR CINCO MIL PESSOAS NA FEIRA DE ARTE DE RECIFE". No corpo da matéria, o esclarecimento de que o pão "apresentado como poema-processo e comido por todos os presentes, foi a maior atração da Feira de Arte encerrada ontem nas calçadas das ruas do Pátio de São Pedro, com a participação de 30 jovens artistas pernambucanos".

8- Sem dúvida o ato se mostra inteiramente de acordo com o ideário daquele movimento, pois como afirmava Wladimir Dias-Pino, um de seus principais fundadores: "No poema / processo temos o processo (leitura criativa) e não a estrutura (leitura abstrata), sendo a funcionalidade informacional mais importante do que a funcionalidade estética. Contra o poema único e a partir de uma dada matriz (processo), todo consumidor / participante poderá construir novas diferentes versões, de acordo com a suas opções particulares." (Wladimir Dias-Pino, "Processo: linguagem e comunicação", 1973, citado por Assis Brasil, na p. 168, da obra referida acima).

9- De acordo com a médica Gudrun Krökel Burkhard ("Novos Caminhos de Alimentação", CLR Balieiro, São Paulo, 1984, p. 111) "o pão é o alimento mais tipicamente humano". De fato, não consigo lembrar-me de outro alimento culturalmente produzido que seja tão universal, presente nas mais diferentes regiões e etnias.

10- O detalhe motivou-me à pesquisa da origem da palavra. Consultando o "Dicionário Etimológico Nova Fronteira", de Antônio Geraldo da Cunha, descobri que "pão" deriva dos elementos gregos "pam", "pan", "pã", e do latino "panis". Sendo que o significado de "pam, pan e pã" é "tudo, todos". Ocorreu-me então: haverá alguma ligação entre o nome do alimento e o do antigo deus Pã (Pan), da mitologia grega?

11- Novo mergulho, desta vez no "Dicionário Mítico-Etimológico",  do conceituado Junito Brandão (Petrópolis, Vozes, v.2, p. 231 e 232). Nada autoriza uma ligação direta entre o nome do deus e a palavra "pão". Porém,  a história de Pã termina por lançar luz para que se intua a possível motivação para a origem do nome do alimento. Ao longo do verbete, mais de uma vez Junito nos mostra que o conceito de "todos" e "tudo" se relaciona ao nome da divindade. Como no trecho em que comenta: "Uma versão mais ousada relata que Penélope foi amada por 'todos' os pretendentes e o produto de tantas uniões seria Pã, 'o todo'".  Ainda de acordo com Junito, mitógrafos e filósofos "verão nesse deus menor a encarnação do Universo, o Todo." Por fim, o autor ressalta o caráter popular de Pã. Portanto, se Pã é, de certo modo, o "deus de todos", podemos concluir que o pão recebe um nome que assinala sua condição de "alimento de todos".

12- Por fim, não poderíamos concluir sem mencionar um dos cometimentos literários alternativos de maior significação, relacionados ao tema: o premiado projeto IN / SACANDO POESIA, coordenado pelo escritor e editor mineiro Rogério Salgado, que durante os anos 90 promoveu diversas edições de páginas poéticas avulsas, distribuídas em saquinhos de pão. À semelhança de uma antologia em livro, as folhas eram impressas e organizadas por autor. Porém em lugar da capa convencional, vinham em saquinhos de pão. Traziam a logomarca e dizeres das panificadoras que os forneciam. Cada edição reunia em torno de meia dúzia de nomes. Poetas selecionados que se cotizavam para cada edição. Fomos agraciados com oito obras assim produzidas. O projeto começou em 1993, sofreu uma interrupção em 1995, após o sexto volume, sendo
retomado em 1997, rebatizado então para RE-IN / SACANDO POESIA. Em 1998, obteve, de Aracaju-SE, o Prêmio Capital Nacional -Categoria Poesia. O último pacote recebido data de 1999. Além do próprio Rogério, vários nomes
de destaque no circuito alternativo tiveram seus poemas divulgados, em mais de uma edição. Alguns participantes: Aníbal Albuquerque, Ari Lins Pedrosa, Francisco Filardi,  Irineu Volpato, J. Cardias, Leila Miccolis, Lúcia Serra, Márcio Souza Andrade, Nilza Menezes, Said Oliveira, Salomão Sousa, Wilmar Silva, Zanoto e muitos outros.

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