Coluna de 21/7
(próxima coluna: 21/8)
J. MEDEIROS E A GERAÇÃO ALTERNATIVA POTIGUAR
1. Este mês adquiriu um significado especial para Nozarte, pois lançamos a edição de número 15 e, simultaneamente, anunciamos a suspensão temporária da publicação, tanto em virtude do excesso de trabalho quanto pela necessidade
de reavaliar nossos projetos. Entretanto, continuaremos com nossa coluna em Blocos.
2. Desta vez escolhemos falar de um livro muito peculiar que encontramos recentemente na Feira do Livro. Chamou-nos a atenção pelo nome do organizador, J. Medeiros, com quem já nos correspondemos algumas vezes e de quem divulgamos trabalhos em Nozarte. Por sua vez, Medeiros nos foi indicado por Avelino de Araújo, um dos mais expressivos nomes da poesia visual no Brasil.
3. O poeta e crítico literário Moacy Cirne sempre ressalta a importância da obra produzida no Rio Grande do Norte para o cenário da literatura alternativa nacional, sobretudo no tocante às produções mais esteticamente ousadas, surgidas a partir da poesia concreta e do poema processo, dos anos 60 em diante.
4. Organizada pelo poeta e artista plástico J. Medeiros (José Medeiros Pereira Guedes), "Geração Alternativa; antilogia poética potiguar, anos 70/80", Natal, Amarela Edições, 1997, 340 p., constitui demonstração da força do movimento naquele Estado. Reúne, incluindo o próprio organizador, 52 autores nascidos ou residentes no Rio Grande do Norte. A única exceção é Dailor Varela, nascido em Goiânia e então residente em Monteiro Lobato-SP. Entretanto, consta de sua biografia ter sido repórter do "Diário de Natal". Aliás, Dailor marca presença com o excelente poema processo "Porno-Gráfico", que se desenrola ao longo de três páginas, com uma seqüência um tanto fílmica, que lembra também as seqüências das histórias em quadrinhos: na primeira tomada, um triângulo é posto diante de um cilindro ladeado por duas esferas; todos os objetos estão em cor preta, contrastando com o fundo branco, numa representação grafopoética dos órgãos sexuais feminino e masculino; na segunda página, o cilindro invade o espaço do triângulo num belo efeito visual; na derradeira página, temos a figura de um triângulo preto com uma esfera branca ao centro.
5. Conforme o nome do livro sugere, trata-se de uma "antilogia", isto é, abriga poemas, escritos e visuais, de teor profundamente crítico ao sistema, ao "statuscu", conforme diz J. Medeiros no detalhe de uma colagem. Nela, a palavra surge em letras garrafais, em forma de faixa, aberta a partir de um rolo de papel sanitário, no qual se pode ainda apreciar a delicada ilustração de uma rosa.
6. O livro como um todo é muito bom. Claro, para os apreciadores do gênero, entre os quais me incluo. Dos autores que conhecemos anteriormente, além do Jorge: Avelino de Araújo, Clotilde Tavares, Dailor Varela, Enoch Domingos, Falves Silva, Franklin Capistrano, Franklin Jorge, Leontino Filho, Moacy Cirne e Socorro Trindad.
7. Porém, um aspecto muito interessante é que o volume presta uma ilustrada homenagem ao "Grupo Dés", reponsável pelo lançamento, em 1966, da poesia concreta no Rio Grande do Norte. Era composto por Anchieta Fernandes, Ribamar Gurgel, Fernando Pimenta, Juliano Siqueira, Moacy Cirne e Jarbas Martins. Obras desses autores e referências a eles, bem como fotos e notícias, vão da página 310 a 332. A obra tem ainda abertura feita por Alexis Gurgel, "in memorian". Jomard Muniz de Britto faz as orelhas. E. M. de Melo e Castro, a quarta capa.
8. A visualidade constitui o ponto forte e incomum do livro. Porém, há também bons momentos de poesia escrita minimalista, bem ao estilo combativo da época, como nestes versos de Aluízio Mathias: "o que ontem aqui era lixo / hoje jaz / como edifício" ("Especulação", p. 29).
9. Seria impossível, de tão volumosa obra, extrair todos os casos especiais, inclusive porque certos trabalhos somente podem ser bem avaliados quando vistos. Vamos, no entanto, a mais alguns: Avelino Araújo realiza criativas colagens, em que o caráter de reivindicação de justiça social e preservação do meio ambiente se evidencia. Black Out, poeta nascido em Currais Novos, escreveu, em caixa alta, a expressão "Memória do Brasil", repetida 10 vezes; só que, a cada repetição, os dizeres vão-se desbotando, até que na última linha resta um traço esmaecido. Clotilde Tavares, num poema sem título dedicado a Ginsberg, indaga em certo trecho: "continuarei sendo aquela poetisa maldita meio beat meio louca / meio rock meio boba & tão necessária quanto uma garrafa / vazia de refrigerante ou um copo de papel usado?" (trecho da p. 91). Falves Silva contrapõe imagens de solidão, miséria e multidão à palavra SO RRIA, escrita em letras gigantescas, separada dessa forma (p. 135 e 139). Franklin Capistrano (p. 151) explora com inteligência e sensibilidade as palavras "EU / EGO": um olho surge em "close", ocupando toda página; a letra G, da palavra "EGO" é escrita de maneira realçada sobre a pupila, sugerindo a aproximação entre "EGO" e "globo ocular", embora a expressão não se ache literalmente escrita. Por sua vez, Franklin Jorge investe no humor erótico e irônico em "Tesão": "Há qualquer coisa / acontecendo / por debaixo do pano" (p. 159). Leontino Filho (p. 231) apresenta a imagem de um livro em cuja capa se pode ler: "Dicionário de Ética"; uma tesoura prepara-se para cortar a palavra "ética" (bem atual). Marize Castro comparece com um toque "Nem Rosa Nem Azul" (p.235): "Os acordes / que me acordam / são meio bruxos / balada blue. / O mar / em que eu navego". E por falar na cor, observa Moacy Cirne, no tópico número 1, do poema número 2 (p. 240): "a janela pálida do poema operário impulsiona a fábrica de papel azul.". Paulo Augusto, na página 253, constrói poema inspirado na linguagem da publicidade, oferecendo como brinde "Cafunés com mãos cheirosas de alecrim. Cantos suaves ao ouvido. Declarações de amor e prazer pelo contato. Pequeno fluxo de informes alcoviteiros" (trecho de "Aviso aos Navegantes"). Em "Apenas um Poema de Amor (vide bula)", Plínio Sanderson projeta na página a imagem retorcida de um arame farpado, sobre fundo minuciosamente pontilhado (p. 268). Poema dos mais graves é "Greve", de Socorro Trindad, que após uma poética descrição dos horrores praticados pelo sistema (eram os anos do duro regime) conclui: "Porque é assim que tu estás matando, / e morrendo a minha
geração." (p. 277)
9. Fica um certo gosto de frustração por não ser possível exibir ainda mais, inclusive alguns autores não mencionados. Os problemas de espaço e de recursos impedem melhor amostragem, dado ser um livro de inusitada visualidade. Entretanto, fica o registro da existência dessa obra de grande valor artístico e histórico.
Rio de Janeiro, 17 de julho de 2005