Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.    

Coluna de Raquel Naveira
Nº 60

MAR DE ROSAS

                  Quando voltávamos para nossa terra, na estrada rumo ao oeste, ouvimos uma antiga canção do conjunto The Fevers, dos anos 70, época em que éramos jovens e acreditávamos em alegria e que tudo poderia dar certo. A música começava assim: “Você bem sabe/ Que não lhe prometi um mar de rosas/ Nem sempre o sol brilha/ Também há dias em que a chuva cai”. E lá fomos nós, maduros e sofridos, cantarolando que não tínhamos culpa de nada, que só desejamos com sinceridade ser felizes, que foi impossível colocar o mundo inteiro aos nossos pés, que ainda havia tempo para amar.
                  “Mar de rosas”, que expressão maravilhosa, contraditória em si mesma. Mar, oceano, massa líquida que circunda nossos continentes interiores, abismos onde lutamos contra ondas de dificuldades e inquietações. Rosas, símbolos de perfeição, pedaços de carne e coração, vermelhas, sensuais, destilando gotas de mistério e paixão. Mar de rosas é tormento, renascimento, segredos de vida e morte, de união e separação. Utilizamos “mar de rosas” para indicar uma situação sem adversidades, sem aflições. Realidade que não se sustenta em nossa navegação pelos mares bravios da existência.
                  O amor verdadeiro exige caráter. Há que se preservar com uma redoma de delicadeza o vaso cheio de rosas vermelhas e, ao mesmo tempo, programar o cérebro para enfrentar as tensões, as rejeições, as demissões, as contas para pagar empilhando-se sobre a mesa. Encontrar um ponto entre a disciplina e a sedução. Colocar no meio desses dois polos um pouco de silêncio e, se possível, depois, uma longa conversa como se os amantes se conhecessem desde a infância. “– Amado meu, confesso, sozinha não daria conta do recado. Sei bem que você não me prometeu um mar de rosas.”
                  E o mundo não está mesmo um mar de rosas. À nossa volta, o princípio das dores: rumores de guerras, violência, nações contra nações, terremotos, fomes, refugiados, irmãos contra irmãos, filhos contra pais. O poeta Vinícius de Morais, no poema “Rosa de Hiroshima” nos alertou que, desde aquele fatídico dia 6 de agosto de 1945, quando a primeira cidade foi arrasada pela bomba atômica lançada pelos americanos no Japão, as feridas seriam abertas como rosas cálidas, no seio de milhares de mortos, no seio da humanidade. Rosas radioativas, estúpidas, inválidas, sem cor, sem perfume. Somos sobreviventes num mar de rosas de sangue.
Já o Pequeno Príncipe, personagem de Saint-Exupéry, apaixonou-se por uma única rosa. Era uma rosa orgulhosa, caprichosa. Uma rosa tão feminina e indefesa, que nascera despenteada ao primeiro raio de sol. Ele era jovem demais para amar e partiu numa aventura, deixando a rosa. Um dia, em nosso planeta, ele viu uma plantação de rosas, um mar de rosas. Compreendeu que a sua não era única, mas era aquela à qual ele havia dedicado seu tempo. Viu também quando pequenas larvas nos estames se transformaram em borboletas.
                  Chocante, tenso, resistente a interpretações é o filme Beleza Americana. O ator Kevin Spacey, no papel de Lester, é um homem frustrado, de meia idade, que se apaixona por Ângela, melhor amiga de sua filha adolescente. Sua família, seus valores, sua masculinidade estão sendo acuados pelo consumismo, pelo feminismo e por estranhos desafios que ele nem consegue verbalizar. Tudo desmorona ao seu redor. Em fantasia, imagina aquela jovem linda, nua, cercada por um mar de rosas, chuva de pétalas vermelhas caindo sobre seu corpo tenro, virgem e leitoso. De repente, ele a abraça e se sente impelido a protegê-la como se ela fosse uma filha. Filme dolorido que mostra o quanto somos criaturas pobres, miseráveis, equivocadas, mas com sede de redenção final.
                  Numa curva a oeste da estrada, uma cena linda: o pôr do sol amarelo e vermelho num horizonte imenso sobre o rio. As palmas dos buritis agitadas por um vento brando e quente. Demo-nos as mãos e cantamos: “Você bem sabe/ Que não lhe prometi um mar de rosas...” Mas como a vida é bela.

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