Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/

Nº 184 - 1ª quinzena de setembro de 2010
(atualização quinzenal, dias 10 e 25)
Próxima: 25/9/2010

Minha coluna

                Sempre tenho a impressão de que não vai dar. Que não haverá uma nova crônica. Eu devia de ter um estoque, preparadas. Escritinhas, e bonitas. Mas até agora não as tive. Nem faltei. Não foram maravilhas. Não foram Rubens Bragas. Nem mesmo sei se interessei. Ou se cansei.
                Outro dia, voando num e-mail de minha amiga X., portuguesa, ingressei numa lista de discussão de Fernando Pessoa.
                 O meu primeiro livro de Pessoa foi-me dado por Cleonice Berardinelli. Minha professora. Eu era garoto de faculdade de letras. D. Cleonice escreveu uma generosa dedicatória, que cobriu com uma fita: "Para o R., em quem deposito grandes esperanças. Cleonice Berardinelli. Rio, 1966". É uma edição da Aguilar, publicada em 65, com notas de Maria Aliete Galhoz. Tenho até hoje.
                D. Cleonice nem sabe como a admiro. Com meu caráter esquivo e fechado, nunca soube que sou seu súdito. Dona Cleo tem uma esmerada elegância no falar. E no vestir. Não há vejo há muitos anos. Brilhante, cultíssima. Antes de nos formarmos, ela nos ofereceu um "lanche" em seu apartamento de Copacabana, esquina com Av. Atlântica. Ali ela ocupava dois apartamentos. Um era a biblioteca.
                Na realidade, fui fazer letras porque queria ser escritor. Profissional, de verdade. O resultado foi um desastre. Ao tomar contato com os grandes autores, parei de escrever por muitos anos. Eu já tinha publicado muita coisa, com 17 e 18 anos de idade. Constava até de uma antologia. Pois fiquei mudo. Inibido.
                Logo de saída, no vestibular, tivemos de enfrentar a Metamorfose, de Ovídio. Em latim. Logo depois, nas aulas de Guida Barata, apareceu Homero, que nos ocupou um ano inteiro. Depois vieram Os lusíadas. Não, qualquer escritorzinho do interior, como eu, tinha de ficar calado.
                E não era só. Havia os colegas de faculdade. Gênios. O Rubens já tinha lido todo Proust e seus críticos. O Ítalo sabia tudo: tocava piano, falava várias línguas. Ia ser assistente de Celso Cunha, se não tivesse falecido. Um dia me explicou a Paixão segundo São Mateus, de Bach - musical e teologicamente. Ítalo era mulato, alto, quase cego. Morava num casarão do Jardim Botânico. Outro, chamado A., lia grego e latim como eu leio o português. Mas todos morreram. E A. enlouqueceu.
                Nossos professores criticavam hoje o tratado que tinha sido publicado em Paris ontem. Eram Alceu Amoroso Lima, Matoso Câmara Jr., Anisio Teixeira, Celso Cunha, Afrânio Coutinho etc.
                O que mais me impressionou foi Alceu. Eu sempre o acompanhava da Faculdade ao Centro Dom Vidal, depois das aulas, levando sua pesada sacola de livros. Quando publiquei "Crítica da escrita", meu primeiro livro, mandei um exemplar para ele. Ele me respondeu assim: "Petrópolis, 1-4-81. Meu caro colega Rogel. Muito obrigado pelo livro em caminho. Já o folheei. Comecei pelo fim como recomendou. Como você começou na nossa velha Faculdade, hoje é o velho professor que está no fim orgulhoso do antigo aluno e não arrependido do que lhe tenha dado. Hoje trocamos de lugar, você na cátedra, eu na assistência. Do velho Alceu."

                A "tradução" da letra de Alceu foi feita por Antonio Carlos Villaça. Quase ninguém consegue ler seus manuscritos. Ele escrevia com regularidade, no Jornal do Brasil. Escrevia o artigo a mão. Depois enviava para sua filha, que era freira em São Paulo. Esta datilografava e atualizava a ortografia, que em Alceu permanecia antiga. Devolvia para ele, que o lia, fazia algumas correções a mão, entre as linhas. E o emissário do JB ia buscar. Só escreveu poucos livros. Tudo o mais eram artigos, que ele periodicamente reunia de acordo com o assunto, e editava em livro, como se os artigos fossem capítulos. Seus olhos brilhavam, mesmo em avançada idade. Era mundialmente respeitado. Até na União Soviética.
                 Um dia, uma amiga negra e comunista, querendo fugir da ditadura militar, pediu uma bolsa na Universidade Lumumba. De lá escreveram que ela teria de apresentar uma carta de apresentação de Alceu Amoroso Lima. E Alceu era seu professor! Foi fácil.
                A esquerda brasileira desprezava-o, porque católico. Mas Alceu, visto com os olhos de hoje, estava muito à frente.
                Na juventude tinha sido atleta. Nadava, do Flamengo à Urca. Gostava de acordar muito cedo, para comprar os jornais. Tomar café nos bares, ao amanhecer. Mesmo em idade avançada, dirigia seu carro. Até bater, em Petrópolis. Mesmo em idade avançava, gostava de fazer as refeições fora de casa, em restaurantes. Disse-nos que fazia "o desjejum com Croce". Um dia, se esqueceu do título de um livro de Anchieta. E eu o lembrei, em plena sala de aula. Desde então ficou meu amigo. Até hoje, tantos anos passados. Até hoje, Professor Alceu.

                Lendo o raríssimo escritor amazonense PÉRICLES MORAES (1882-1956), um texto sobre Euclides da Cunha. Era autodidata. Era professor de francês. Foi prefeito de Coari e de Parintins, a terra do boi-bumbá. Escreveu nos jornais. Publicou vários livros, hoje raros. Quando prefeito no interior do Amazonas tinha seus livros publicados em Portugal. Assim "Figuras & sensações", publicado no Porto, em 1923. Escreveu muito sobre a literatura francesa e por isso acusado de "afrancesado". Mas ele era um especialista da cultura francesa, professor de francês, e não poderia ser de outro modo. Pois também escreveu sobre a Amazônia. Era um extraordinário escritor. Acusam-no de academicismo francês, porque era presidente da Academia de Letras. Mas isso é ignorância dos acusadores: seu estilo faz parte de uma gloriosa época em que aparecem Euclides da Cunha, Rui Barbosa, Alberto Rangel, e no Amazonas Genesino Braga etc. Eram grandes prosadores, sofisticadíssimos. Foram atacados pelos modernistas de 1922, e continuam censurados até hoje. No entanto, não existe somente literatura modernista no mundo. O modernismo de 22 não é tudo que se fez. Ele também é datado. Para os gostam de textos extraordinários, que dizer dos textos de Roland Barthes e de Michel Foucauld?

________
Arquivo de crônicas anteriores:
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48 , 49, 50, 50ext, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 6566, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74 , 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114 , 115 , 116, 117, 118, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 131132, 133, 134 , 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144 , 145, 146, 147, 148, 149, 150 , 151, 152 , 153, 154, 155, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 162 , 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173, 174 , 175, 176, 177, 178, 179, 180, 181, 182, 183

Conheça o "NOVO MANUAL DE TEORIA LITERÁRIA" (5ª ed., Editora Vozes) e "O AMANTE DAS AMAZONAS", 2ª EDIÇÃO, EDITORA ITATIAIA: este romance, baseado em fatos reais, históricos, conta a saga do ciclo da borracha, do apogeu e decadência do vasto império amazônico na maior floresta do mundo. Cerca de cem volumes da época foram lidos e mais de dez anos de trabalho necessários para escrever esta obra. CLIQUE AQUI PARA LER ONDE VOCÊ PODE ENCONTRAR O ROMANCE DE ROGEL SAMUEL.

Voltar