Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/

Nº 203 - 1ª quinzena de setembro de 2011
(atualização quinzenal, dias 10 e 25)

VIDA FAMILIAR E VIDA PÚBLICA

É um tema banal, popular, mesmo vulgar. A mãe, já tão gasto motivo dos cadernos poéticos e saudades, pois todos nós tivemos ou temos a mãe a saudar, a lembrar, a louvar, a chorar.

Mas Jorge Tufic é um poeta excepcional: com que realizou sua obra-prima, sonetos pós-modernos em que ele traça o perfil, o “Retrato de mãe“, de sua verdadeira mãe, ou da personagem mãe.
O livro todo está no blog
http://jorge-tufic.blogspot.com/

O pequeno livro é uma obra-prima em quinze sonetos. Começa por uma invocação.

O que lemos aí é a invocação de um sabor (de um saber), de um elemento gustativo, a maçã, o trigo, me o visual, fios de luz, e o táctil elemento do vento, e os aromas, a paisagem, a planície, os montes e as noites, a pedra, a febre, o martírio.

Venham fios de luz, aromas vivos
misturar-se às palavras, à centelha
do louvor mais profundo deste filho
que se depura e sofre com tua ausência.
Venha o trigo do Líbano, a maçã
de que tanto falavas; venha a brisa
tecer mediterrânea esta saudade
que vem de ti quando por ti me alegro.
Que venha a primavera, saturando
vales, planícies, colorindo os montes,
noites de luar caiando os muros altos.
Venha a pedra da igreja onde ficaste
quando em febre te ardias. Venham lírios
rebrotados de ti, dos teus martírios

Invocada, a mãe começa a delinear-se, começa a aparecer, vem em fragmentos, pouco nítida, mas forte, sentida, ou pressentida, sim, começa ele a pintar o retrato interno da dulcíssima Mãe e que logo todos nós assumimos como nossa (quem consegue falar de sua mãe morta sem tornar-se piegas?), conjuntamente, nossa mãe síntese e simbólica, a Fonte, semente e nome de nossa vida, que tudo nos deu.

Tema freudiano, pois.

E no segundo soneto logo aparece um mistério: Quem será este desconhecido Ramón que aparece no penúltimo verso?

É D. Ramón Angel Jara, Bispo de La Serena, Chile, citado no pórtico do livro. No livro há citações, pós-modernidade. Ou seja, a obra se diz: “Calma, eu sou apenas uma obra literária”.

A descrição, o retrato começa pelos cabelos, as tranças, a voz, a lembrança. A fonte do pão, do leite, da flor, do fruto. Mãe que é para “amar depois de perder”, como no verso de Drummond. Na verdade, Tufic, só de lembrá-la um soluço arrebenta-nos a crítica.

Teus cabelos castanhos, tuas tranças
fazem lembrar as madres de Cartago.
Doce mãe, sombra tépida, murmúrio
de sonâmbulas fontes; poucos sabem
teu nome, enquanto, fatigada embora,
dás-nos o pão e o leite, a flor e o fruto.
Poucos sabem te amar enquanto viva
e, quando morta, poucos também sabem
da fraqueza que em força transformavas.
Ai, retrato de mãe, quanto mistério
se converte na tímida lembrança
destes álbuns que lágrimas sulcaram.
Na verdade, Ramón, só de lembrá-la
um soluço arrebenta-nos a fala.

Depois vem a casa, a cozinha, as comidas da culinária libanesa, a lentinha, o azeite, as cebolas fritas, a coalhada, o pão redondo, que a Mãe preparava... mas tudo isso passou. Onde estão as comidas, os pratos de lentilha, a terrina de azeite para as coalhadas, as cebolas fritas? Tudo passou... Como, ao redor da casa, o vento. Como passou o vento do tempo. Também passam a cerca do quintal, os vizinhos, as vozes cantantes, e passaram. E o que passa é aquele Calendário sem datas, o chão do passado, o que passa. A casa da mãe. O que passa. O chiar da frigideira. Os convites. O passado convida o leitor no seu chamado culinário: a mãe é aquela cozinheira das almas, das afetividades, da fraternidade, da ternura, o amor recende dessa mãe cozinheira, que ainda manda seus recados e canta, é assim que ela aparece, suada e infinitamente bela e luminosa, centro da vida familiar. Social.

A mãe é o corpo da “vida privada”.

O que significa vida familiar, vida privada?

A palavra “social” é de origem romana. Os gregos não a conheceram. Societas significava, para os romanos, uma aliança entre pessoas para um fim específico, “como quando os homens se organizavam para dominar outros ou para cometer um crime”.

O pensamento grego era diretamente oposto a esta organização “social”: essa associação natural cujo centro é constituído pela casa e pela família.

A pólis marcava a destruição de todas essas unidades organizadas à base do parentesco. A sociedade representa a família. O ser político, o viver na pólis “significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através da força ou violência” (ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense/Rio de Janeiro, Salamandra/São Paulo, Ed. Universidade São Paulo. 1981. 339p.). Para os gregos, forçar alguém mediante a violência, ordenar ao invés de persuadir eram modos pré-políticos de lidar com as pessoas, típicos da vida fora da “pólis ”, característica do lar e da família, na qual o chefe da família imperava com poderes despóticos; caracterizava a vida dos “bárbaros”, cuja organização era comparada à doméstica.

Toymbee analisou este estado de coisa no seu livro Helenismo (TOYNBEE, Arnold J. Helenismo. Rio de Janeiro, Zahar, 1963. 232p.), em que mostra como a vida familiar era considerada pelos gregos como um lugar onde os participantes estavam sujeitos à perda da liberdade, e à descaracterização de suas individualidades. A vida familiar, diz ele, mantém os homens presos a um elemento por que não optaram e a que não podiam renunciar sem uma violação à própria natureza.

Diz Toynbee:                                                              

A vida familiar mantém a humanidade como serva de uma Natureza não-humana. No seio da família, o ser humano não é personalidade independente, com um espírito e uma vontade próprios — é um rebento na arvore da família, que por sua vez e um ramo da árvore evolucionária da vida, cujas raízes mergulham nos abismos do subconsciente (p.55).

A tradução latina do homem como animal rationale é um erro de interpretação. Para Aristóteles (ver PETERS, F.E. Termos filosóficos gregos. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1977. 273p.), o que elevava o homem não era a razão, mas o nous (p.163), isto é, a capacidade de contemplação cujo conteúdo não pode ser expresso por palavras. Todos que viviam fora da pólis eram aneu logou, destituídos não da faculdade de falar, mas de um modo de vida no qual só o discurso tinha valor e sentido, e não a compulsão, não a violência, característica dos povos bárbaros.

Hoje o mundo ocidental vive a nostalgia do antigo mundo grego. Pois na pólis , a mais hábil arma era a capacidade de discorrer uns com os outros, e de argumentar com palavras e não com a ação violenta. Neste sentido vive o mundo moderno fora da pólis, num estado pré-político, em estranha regressão.

Da pólis para a sociedade opera-se uma mudança de pensamento político. Na sociedade, o pensamento político já não é arte política, mas economia , economia social. O que chamamos sociedade passa a ser um conjunto de famílias organizadas do ponto de vista hoje burguês, num ser estrutural chamado Estado. Para os gregos, tudo que fosse econômico não era político, mas estava relacionado à esfera do apolítico da vida privada (isto é, privada de liberdade) da família. A vida privada era o lugar doméstico, privado por definição do espaço público, onde o dialogo era franco. Não é sem razão que os textos de Platão se chamam diálogos, isto é, através do logos. Na vida pública estava o espaço da liberdade dos homens livres, não da dependência, da interdependência. E os escravos eram considerados seres desprezíveis não porque estivessem na condição escrava, mas porque se sujeitavam à escravidão, não preferindo a morte, o suicídio, e não tendo a necessária coragem para a vida de risco e de perigo que constituía a vida dos homens livres, onde o perigo apesar de tudo estava sempre presente: pois outro conceito grego eminente era de que a liberdade — supremo bem a atingir — não significava segurança (inferior condição de sujeição a que estavam sujeitas as crianças e as mulheres), mas perigo e aventura, característica dos heróis.

A literatura grega é uma longa série de batalhas e de mortes, uma ampla apologia da aventura do espaço, da não resignação do homem com qualquer restrição ao seu existir. Homero, pois, principalmente, foi o pai da ética grega. E um herói grego estava na antítese de um moderno burguês.

Portanto, na organização da moderna sociedade burguesa reina o domínio da necessidade, não o espaço da liberdade.

O moderno é, por definição, passivamente adaptável, resignado e satisfeito com a sociedade e bem-estar que esta pode proporcionar-lhe. Um ser descaracterizado. A política da pólis não se mostrava meio de segurança social. As sociedades que se seguiram à pólis grega representaram um conjunto de interesses; seja a sociedade feudal, seja a sociedade burguesa, seja a sociedade socialista.

A liberdade, até o avento da sociedade moderna, significa não a liberdade individual, mas a liberdade social, o que começa a mudar no comportamento pós-moderno.

A força da violência está desempenhada atualmente pelo Estado, encarregado de vigiar e punir.

A força e a violência nascem, portanto, universalidade, da raiz da sobrevivência.

Para os gregos, toda forma de governo, tal como o entendemos hoje, representava um estágio totalitário, pré-político, em que predominam a submissão e a falta de espaço, formas desprezíveis de viver.

A vida familiar centralizada ao redor da “mãe”, assim como a vida pública, o espaço público, se refere à vida fora de casa, no espaço da cidade, manifestada pela figura paterna.

A vida familiar é o regaço, materno. O colo, o abrigo. Nela somos todos infantes.

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