Coluna de Rogel Samuel
Rogel Samuel é Doutor em
Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista,
cronista, webjornalista.
Site pessoal:
http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/
Nº 219 - 1ª quinzena de julho de 2012
(atualização quinzenal, dias 10 e 25)
O laranjal florido
Uma das minhas crônicas antigas é "Conheces a região do laranjal florido?", sobre a "Canção de Mignon" de Goethe e seu misterioso verso (“lá, lá”, ou “ali, ali” ).
A beleza do poema se deve à tradução de um escritor hoje esquecido: João Ribeiro.
Homem cultíssimo, jornalista, crítico, filólogo, historiador, pintor, tradutor, João Ribeiro nasceu em Laranjeiras, Sergipe, em 1860, e faleceu no Rio de Janeiro, 1934. Era da Academia Brasileira. O livro Páginas de estética, publicado em 1905, encerra o seu ideário crítico. “Seu sentido estético o fazia inclinado a valorizar os aspectos técnicos, estruturais e formais da obra literária, embora fosse um crítico impressionista, com tendência à tolerância e estímulo aos autores, sobretudo os novos”, diz o site da Academia.
O poema diz assim:
Conheces a região do laranjal florido?
Ardem, na escura fronde, em brasa os pomos d'ouro,
No céu azul perpassa a brisa n'um gemido,
A murta nem se move e nem palpita o louro...
Não a conheces tu?
Pois lá... bem longe, além
Quisera ir-me contigo ó meu querido bem!
A casa, sabes tu? em luzes brilha toda,
E a sala e o quarto. O teto em colunas descansa.
Olham, como a dizer-me, as estátuas em roda:
- Que fizeram de ti, ó misera criança!
Não a conheces tu?
Pois lá...bem longe, além
Quisera ir-me contigo, ó meusenhor, meu bem!
Conheces a montanha ao longe enevoada?
A alimaria procura entre nevoas a estrada...
Lá, a caverna escura onde o dragão habita,
E a rocha d'onde a prumo a água se precipita...
Não a conheces tu?
Pois lá... bem longe, além,
Vamos, ó tu meu pai e meu senhor, meu bem!
No original há um "lá", que se repete (Dahin, dahin), objetivando a transcendência que a tradução excelente de João Ribeiro manteve. Um lá (Mignon) que talvez se refira a certo lugar na Itália, segundo Eça de Queiroz, n'O mandarim.
Na tradução de Paulo Quintela aparecem limoeiros:
“Conheces o país onde floresce o limoeiro?
Por entre a rama escura ardem laranjas de ouro,
Do céu azul sopra um arzinho ligeiro,
Eis que se ergue a murta calma, olha altivo o louro!
Conheces? Oh partir! Partir
Pra lá, contigo, Amado! Oh! Quem me dera ir!”
(GOETHE J.W.. Poemas. Antologia, versão portuguesa, notas e comentários de Paulo Quintela., Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1958, p.103)
A terra privilegiada onde o laranjal floresce ouro (Citronen blühen). Um "lá... bem longe, além", que aponta para lugar, a princípio paradisíaco, onde o sujeito do poema nos convida a ir, com ele, onde dourados pomos brilham na escuridão (Gold-Orangen glühen), e no céu azul a brisa, tudo em paz, nada move, nada passa, nem a vida, nem a glória (nem o louro)... Não a conheces tu? Quisera ir-me contigo...
[Kennst du das Land, wo die Citronen blühen,
Im dunkeln Laub die Gold-Orangen glühen?
Kennst du es wohl? - Dahin, dahin!
Möchtl ich... ziehn.]
É a estrofe epígrafe de "A canção do exílio", de Gonçalves Dias, por isso a transcrevo. Meu alemão é pobre. O poema me foi traduzido em Frankfurt por um amigo cujo nome não quero declinar.
João Ribeiro, sábio e erudito filólogo carioca (1860-1934), também poeta, não mais editado, em 1932 escreveu um ensaio sobre Goethe. Foi catedrático do Pedro II e soube transpor o mistério da "A canção de mignon".
Gonçalves Dias também estudou a literatura alemã.
Em 1843/1844 ele começou a estudar a língua para poder ler os poetas alemães no original.
Em carta a Teófilo Leal, ele escreveu: “Se eu contasse um pouco mais comigo – por outra se eu soubesse grego e alemão – partia já para o Rio. Assim continuarei a escrever o meu poema – o meu romance e as minhas poesias soltas – estudarei alemão – e creio que um ano não será mal empregado”. ( PEREIRA, L. M. A vida de Gonçalves Dias .Rio de Janeiro: J. Olympio, 1943. p. 50).
Goethe introduz, naquela região maravilhosa do poema, fantástica, irreal - uma casa! Sólida casa, como deve ser a da tradição familiar: "O teto em colunas descansa". Casa paterna, a sala e o quarto, o mais íntimo das forças arquitetônicas do espírito ("sabes tu?), que olham, falam, vêem a desgraça a que foi reduzido ("que fizeram de ti, ó mísera criança?") - não, não a conheço, não a reconheço, a casa de meus pais, no além, no bem longe, aonde o poeta me levou.
Meus familiares - estátuas tumulares...
Goethe introduz a palavra-chave (meu pai), a palavra grave, a palavra-montanha, o ponto de fuga, onde a dor se despedaça.
Não só pai, mas pai e "senhor", com os semas que a idéia de senhor nos traz, nos põe, nos dispõe, na mesa da leitura, no poder, na Lei.
Do nome, do não.
Goethe e João Ribeiro têm algo em comum além das "afinidades eletivas": a idéia, a ideologia do pai. João Ribeiro não teve pai (que faleceu cedo), foi criado pelo avô, "culto e liberal" (diz Afrânio Coutinho).
Goethe cultuou o pai, um herói.
Entre eles se estabelece o laço cúmplice da volta ao Pai.
Meu próprio pai, cuja língua materna era o alemão, recitava Goethe de memória.
Mas a montanha está enevoada, envolvem-se nela os mistérios da grandeza... os animais procuram estrada... lá reside o perigo - o dragão! - na Caverna escura, indevassável, uterina, onde se verte a água da vida, que a prumo se precipita, nas veias do destino...
Não a conheces tu?
Está lá.
Lá.
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