Coluna de Rogel Samuel
Rogel Samuel é Doutor em
Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista,
cronista, webjornalista.
Site pessoal:
http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/
Nº 238 - 2ª quinzena de maio de 2013
(atualização quinzenal, dias 10 e 25)
RELENDO PROUST
Dizem as más línguas que quase no fim da vida Manuel Bandeira teve uma namorada.
Um dia ele recebeu um telefonema de uma fã, e, com aquela sua voz fanhosa, perguntou:
- Onde você mora?
Ela disse que era na Tijuca.
E então ele foi visitá-la e pouco depois se mudou para lá.
Parece que ela já era uma senhora, quando o abrigou.
Ele precisava, afinal estava muito velho e sempre morou só.
Eu o conheci: fomos um grupo de amigos visitá-lo, mas ele nos atendeu na porta, de pijama, e disse que não poderia receber-nos porque estava doente.
Lembro-me do cheiro de mofo que rescendia do seu apartamento. Talvez do velho tapete de parede que aparecia atrás dele cheio de ácaros.
Eu já o tinha visto andando pela rua algumas vezes, pois ele morava em frente à nossa faculdade de letras.
Bandeira sempre foi meu ídolo, minha bandeira, e agora estou relendo a sua tradução de “A fugitiva” de Proust, em com Lourdes Sousa de Alencar.
Sempre volto a Proust.
Uma fixação doentia.
Romance de Proust sempre me parece um novelo emaranhado onde nós nos perdemos com prazer, onde nós nos enredamos e encalhamos com embriaguês.
Para mim, Proust representa o máximo do prazer de ler.
Por quê?
Não sei. “A fugitiva” lembra a narrativa de Céleste Albaret, que era sua governanta.
Celeste deixa escapar que “o Senhor Proust”, tão puro, e endeusado por ela, frequentou, ainda que “5 ou 6 vezes”, uma pensão de encontros “de homens”, de propriedade de Albert Le Cuziat, seu antigo protegido.
Esse Albert fora criado de grandes mansões russas, onde viveu “experiências engraçadas”. Era “um grande varapau da Bretanha, louro, sem elegância, e olhos azuis frios como os de um peixe – os olhos de sua alma”.
Um dos seus patrões, o Conde Orloff, mesmo durante um jantar, pedia um penico e urinava diante dos convidados.
Proust deve ter conhecido Albert na casa do príncipe Radziwill.
Depois, Albert deixou essa profissão e abriu a “casa banhos”, suspeitíssima, na Madaleine, e uma “casa de encontros”, num pequeno hotel na Rua de l'Arcade.
Proust, que era muito rico, presenteou Albert Le Cuziat com móveis e dinheiro para sua casa de banhos. Albert tinha vários outros protetores riquíssimos, muito mais ricos do que Proust.
Proust usava Albert para colher informações sobre a alta sociedade, o que aparece na “Recherche”.
Talvez seja Albert um dos modelos de Jupien do seu romance.
Proust também pagava Olivier Dabescat, diretor do restaurante do Ritz, para receber informações: “quem tinha jantado com quem, e que vestido usava naquela noite a sra Tal, e qual tinha sido o protocolo numa mesa ou noutra”.
Albert Le Cuziat, constantemente, era preso. Mas na sua casa de encontros masculinos apareciam políticos importantes e até ministros. Por isso, ele sempre se safava.
Albert descrevia para Proust os detalhes dos gostos dos poderosos, e ele “se divertia”.
Quando queria saber alguma coisa, Proust mandava chamar Albert em sua casa, em seu apartamento. E era ela, Dona Céleste, quem levava a mensagem, com o cuidado de só entregar a carta em mãos, e com a recomendação de Albert devolver a carta.
A casa de encontros tinha duas portas estratégicas. Para saídas de emergência.
Albert vivia com um jovem chamado André, mas este não podia receber as cartas. Talvez Proust tivesse medo de chantagem.
Isto lembra o novo filme de Steven Soderbergh, com Michael Douglas e Matt Damon: "Behind the Candelabra", que se beijam em cena.
O filme conta parte da vida do pianista americano Liberace e disputa a Palma de Ouro.
O famosíssimo Liberace conheceu o jovem Scott (Matt Damon) e o levou para uma de suas sua mansões. Mais tarde o jovem conseguiu mais de cem milhões de dólares por ter vivido com o pianista (o que parece que não consta do "Behind the Candelabra).
No filme, o romance entre os dois vai bem, até que Liberace começa a ver outros homens e Scott se afunda em drogas. Sem nunca poder sair do armário, artista morreu de Aids, em 1987. Douglas dá um show de interpretação, com um Liberace exuberante sem cair na caricatura.
Um dia, Proust disse para sua governanta Céleste:
“Quando vou lá, não gosto muito de demorar, em face das operações que faz a polícia. Não gostaria de aparecer nos jornais de amanhã!”
Portanto, por um motivo ou por outro, Proust frequentou aquilo.
E um dia até pagou para bisbilhotar um industrial masoquista, amarrado à parede por grossas correntes, a ser flagelado “por um tipo ordinário, até que o sangue se espalhasse por todos os lugares. E foi somente então que o infeliz teve o gozo de todos os seus prazeres...”
É o esquivo e enredado estilo de Proust. Aquilo. A fofoca. A maledicência. Os subterrâneos.
Com a maledicência, ele construiu o seu mais soberbo palácio de cristal.
Será que a literatura é uma forma refinada de maledicência?
Ou somos nós, os leitores, os seus psicopatas?
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