Coluna de Rogel Samuel
Rogel Samuel é Doutor em
Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista,
cronista, webjornalista.
Blog pessoal:
http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/
Nº 259 - 1ª quinzena de julho de 2014
(atualização quinzenal, dias 10 e 25)
À TARDE RELEIO BACELLAR QUE DIZ...
A tarde chuvosa. Jogos da Copa, ao longo do país. Tarde escura, fria. Lembro-me, leio um soneto de Bacellar. ”Porta para o quintal”:
Bem haja o sol e a brisa neste canto!
Cá fico maginando a tarde inteira
deixando relaxar nesta cadeira
de embalo o corpo bambo de quebranto.
Brincam nas folhas da saputilheira
brilhos metalescentes, cor de amianto
saltitam sanhaçus de curto canto,
aranhas tecem prata na trapeira.
As telhas debruçadas dos beirais
vão com as calhas de lata, lá entre elas,
coisas de chuva e vento conversando
quais velhinhas comadres; nos varais
a roupa brinca de navio de velas
minha infância perdida reinventando...
(Frauta de barro)
O que se poder ver, neste poema?
O primeiro verso pede sol: “Bem haja o sol e a brisa neste canto!“
“Bem haja”, aqui, significaria “seria bom”.
O poeta está preso, preso em casa pela chuva (como morava mal nosso poeta, num humilde quarto alugado no centro da cidade, atrás do Colégio Estadual, onde estudei). Chove muito, o poeta não sai. O quintal é imaginário. Quintal da infância. Quintal do passado. O “embalo” da cadeira marca a cadência das ondas do embalo do tempo, das ondas do tempo, do tempo passado, do tempo perdido. Quebranto da realidade, depressão, solidão (o poeta era solteiro, solitário), o morno quadro do passado do bairró dos Mocós, onde passou a infância.
O embalo bambo, frouxo, indeciso, vacilante de quebranto que dedilha descortina sua maestria poética: em... ba... bam.. bo... bran... – a cadeira macia do tempo, a cadeira elétrica de quem vive, a cadeira de quem sentado espera o sonho a morte o porvir.
Mas os sanhaçus brincam, pulam, cantam. O sanhaçus existem. Cor de amianto, cor do saputi. A árvore da vida, árvore mágica. Árvore mágica da vida. Onde as aranhas tecem o fio do destino como parcas. Da vida.
Trapeira janela sobre o telhado. Fios de prata, fios do destino. Da vida, da morte.
Depois vem o episódio das telhas.
Luiz Bacellar era um poeta de Manaus, e esta era a cidade das telhas, das chuvas, das soleiras.
Mas Bacellar morreu, Manaus não é mais a mesma.
Sem Bacellar a cidade morre, apaga, muda.
Ele era o profeta da sua cidade. Seu grande cantor, seu artista máximo. Ninguém soube cantar aquela cidade como ele.
As telhas, velhas comadres, vão conversando. Coisas de calhas de lata, coisas de chuva. Só Bacellar deu alma àquelas velhas casas. Sem ele, as casas perderam suas almas, suas significações. Depois da morte de minha mãe e da morte de Bacellar não mais voltei a Manaus. Pouca coisa sobrou ali, além dos beirais das casas que sobraram. O mundo morre, as casas morrem, morrem as cidades. E os bairros. Por exemplo, para mim, Copacabana morreu. Alguma coisa desapareceu ali. Não sei o que foi.
Mas o poeta está nu, suas roupas ficaram no passado, nos varais do passado, nos navios de vela dos varais.
Oh, sim, preciso urgentemente reler Luiz Bacellar... A Bíblia desse nosso canto. “Frauta de barro”, cujo prefácio da 6ª edição escrevi.
Já se vão tantos anos...
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