Coluna de Rogel Samuel
Rogel Samuel é Doutor em
Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista,
cronista, webjornalista.
Blog pessoal:
http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/
Nº 305
2ª quinzena de outubro de 2016
(atualização quinzenal, dias 10 e 25)
A ARTE DE FICAR EM CASA
Como os velhos desenvolvem a arte de ficar em casa? Alguns (e ricos) aprendem a fazer turismo. Viajam pra cima e pra baixo.
Não ficam em casa.
Mas a tia de minha amiga, filha de um almirante, brasileira, solteira, falecida recentemente, com mais de 90 anos, de cadeira de rodas, todos os anos fazia um cruzeiro para a Europa, levada pela cuidadora (e seu filho, um rapaz que a ajudava).
Não era rica, mas tinha duas aposentadorias, passava o ano pagando as prestações do navio.
A bordo se sentia em casa.
Como os parentes a impediram no último ano de vida, com a passagem já paga, desgostosa, arranjou um câncer no fígado e logo morreu de desgosto. Sem dor.
O Barão de Nova Friburgo tinha doze fazendas de café e construiu o Palácio do Catete, sede do governo brasileiro até Juscelino.
Pois uma senhora pobre, neta do barão, que vivia de aposentadoria do INPS, e sentia dificuldade de pagar o condomínio, nunca perdeu a pose de grande dama, porte altivo, como se estivesse ainda em Palácio. Usava uns brincos de plásticos coloridos e umas bijuterias baratas que no seu corpo pareciam reluzentes jóias preciosas. Perto dela a conversa alongava a noite, a prodigiosa memória dos fatos, a cultura enciclopédica. Narrava viagens. Paris, New York. Gesticulava como se estivesse ainda no salão da marquesa sua tia.
Tinha desenvolvido a arte de ficar em casa.
Outra amiga, a H., vendeu seus bens para viajar. Vendia um apartamento por ano e gastava todo o dinheiro em Paris. "A única coisa que não se perde são as viagens", dizia.
Certa vez arriscou seu salário comprando uma cadeira antiga. "Preciso dela, para compor um canto da sala", comentou comigo. Eu estava junto.
Morava num apartamento no Flamengo, único bem que lhe restou. Tinha boa biblioteca, num dos cômodos, mas nunca possuiu um aparelho de TV. Nunca via tevê. Quando sozinha, restava na sala, um livro nas mãos, ou se perdia em divagações.
Lembro de seus belos quadros, do carrilhão. Servia o chá que bebíamos em Sèvres que pertenceram a sua tia, namorada do Conde..., quando este ainda solteiro. A tia recusara-se a casar com o Conde, dono da maior empresa do Brasil (ele era chato...). O chá, servido com uns biscoitinhos que lembravam as tardes de Proust...
Era a arte de ficar em casa.
Outra amiga, pobre, passava os dias quentes de verão no Shopping Rio-Sul para curtir o frio do ar-condicionado que não tinha em casa. Chegava de manhã, ficava até a noite... Morava perto, num conjugado miserável, aonde nunca levava ninguém. Mas sentava-se com um livro numa daquelas poltronas do Shopping como se fosse a rainha de Sabá. E na realidade ela era. Ela foi eleita Rainha do Carnaval num clube do subúrbio nos idos de 1950...
Enfim, é a arte de ficar em casa.
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