Coluna de 6/1
(próxima coluna: 16/1)
Meio doida. E daí?
Tenho pensado seriamente em enlouquecer. Não totalmente. Ser somente meio doida. Cansei de ser meio normal. Além de ser muito, mas muito chato mesmo, é pouquíssimo original. E sem originalidade a vida perde toda a sua graça. Ser meio normal não acrescenta nada à pessoa ou traz qualquer vantagem, mínima que seja, a tarefa de existir. A meio normalidade não é perdoável, não merece o benefício da dúvida, nem é digna de compaixão. Ninguém diz: "coitado de fulano, deixa p'ra lá, o infeliz é meio normal", com ares de comiseração explícita. Ou: "pobrezinha dela, não liga, ela é só meio normal", ostentando aquele olhar compreensivo, dos que já viram de tudo um pouco nessa vida.
Ser meio normal é o mesmo que ser meio nada, meio coisa nenhuma. Onde, então, está o proveito de ser meio normal? Ser quase igual a todo mundo? Pior, só ser totalmente normal. Aí não tem escapatória. É caixão e vela, com umas três carpideiras para derramar lágrimas de crocodilo e entoar umas "incelença" na intenção da pobre alma, que não teve o bom senso de desencarnar. Tresloucado completo, com folha corrida em manicômio, também não vale a pena. Não temos consciência da própria loucura - o que nos impede de torná-la divertida e nos divertirmos com ela. Ficamos à mercê da vontade alheia. Debatemo-nos numa existência contraditória - real para nós, ilusória para os outros. Por vezes alegre, suave. Na maior parte do tempo, desesperadora. Não. Patologia mental não tem graça nenhuma. A demência absoluta é a outra face da normalidade completa. Ambas, deprimentes e avassaladoras.
Já a meio loucura é só vantagens. Tudo é meio, mas não é pela metade. Não sendo metade, não acumulamos frustrações - sentimento próprio da incompletude. Temos consciência da realidade, sem a obrigatoriedade, porém, de nos adeqüarmos à ela. Meio doido é um humano deliberadamente descompromissado. Um ser que se abstrai da realidade sempre que ela se torna intolerável: despótica, perversa, arbitrária. Meio doido é um meio farsante inofensivo, mas muito esperto. Sabe intuitivamente ultrapassar os obstáculos colocados em seu caminho. Nem os pula, nem os destrói: simplesmente os dribla. Como Garrincha, um notório meio doido, fazia com os zagueiros que tentavam impedi-lo de chegar ao gol. Tem zagueiro que até hoje não encontrou a bola nem o rumo de casa.
Meio doido não confunde os conceitos de moral e ética. Ele escolhe as regras sociais que deseja ou não seguir. Constrói seu próprio conjunto de valores e por ele se norteia. Em síntese, é um amoral do bem. E tudo - feito ou desfeito, aparentemente certo ou errado - é debitado na conta da metade insana. Pois, quando se é um meio doido assumido, ninguém lembra da porção sã. O que, na prática, resulta na liberdade de ser e fazer o que se quer, onde e quando der na veneta. Se por ventura um incauto reclamar, bastar dar de ombros. E, se desejar - porque aluado não tem obrigação com nada mesmo - retrucar como resposta: "sou meio doido, e daí?". Como não é prudente discutir com doido nem aconselhável contrariá-lo, fica o dito ou feito pelo não dito ou não feito.
Pensei nisso pela primeira vez, meses atrás. Tudo e todos me entediavam e eu entediava tudo e a todos . Ser meio doido é particularmente interessante nessas fases, quando a vida tem o sabor de um monstruoso sanduíche de pão com cebola, sem direito a maionese, catchup ou mostarda. Os dias começam e terminam como plágios de um filme B, de quinta categoria. Desses reprisados milhares de vezes nas madrugadas das tvs abertas - um tipo de castigo inventado por algum sádico de barba para martirizar, ainda mais, os infelizes que sofrem de insônia e não tem os canais a cabo como salvação. Esses merecem o privilégio da ira louca, absoluta e justificável (no caso dos insones) a la Michael Douglas em "Um dia de fúria". Não é uma sugestão, muito menos um conselho. Mas, se alguém o fizer, que seu desempenho seja convincente, marcante e irretocável. Sem a canastrice do filho do Kirk Douglas - esse sim, ma-ra-vi-lho-so, sobretudo velho.
Não que o tédio tenha partido para todo o sempre. Tédio tem a mania de voltar sem convite, sempre nas ocasiões menos apropriadas. Um tipo de parente chato. Colorida, com arco-íris no horizonte e estrelinhas prateadas deslizando a cada passo que dou, a vida também não está. Nem quero isso. Coisa mais ridícula para uma mulher que passou há muito dos 15 anos. Admito: sinto-me uma pós-adolescente tardia. Mas não a ponto de encarnar a Dorothy. Eu, uma Judy Garlan quarentona, de tranças, cantando Over The Rainbow na companhia de um homem de lata e um leão falante?! Seria um desastre de proporções inimagináveis! O naufrágio do Titanic na primeira pessoa do singular. Nem pensar. Um tanto zureta, sim. Patética e ridícula, jamais. Vá lá que a vida imite a Arte. Pois que seja, então, um filme de Felline. Não "Roma, cidade aberta". "La nave vá" é mais apropriado a quem se candidata à ser meio destrambelhado.
Meditei profundamente sobre esse assunto. Passei dias mergulhada no mais absoluto silêncio até alcançar a iluminada conclusão: não dá para pirar, seja em parte ou integralmente, sem ter um personagem definido. Doido ou meio doido que se prezem têm um personagem. Imprescindível ter gosto pelo burlesco e pela sátira. Precisa estar alí, na cabeça, prontinho para entrar em cena quando a deixa lhe for dada. Deve saber improvisar com desenvoltura, valendo-se dos cacos sempre que for oportuno. Afinal, nunca sabemos antecipadamente o momento em que se fará necessário chamá-lo ao palco. Portanto, tem de estar com o texto na ponta da lingua. Personagem de doido não tem a ajuda de contra-regra ou dálias. Atua sozinho, por conta própria.
Difícil é escolher o personagem. A história e o mundo das Artes são mananciais de tipos histriônicos. É preciso, porém, decidir primeiro se ele terá alguma semelhança conosco, a mais remota que seja. Ou será totalmente diferente, até mesmo ser o nosso oposto. O primeiro que me veio à mente foi Maria Antonieta. Rechacei a idéia de pronto. Óbvia demais! Além do que morreu decapitada e eu não quero perder a minha cabeça - a não ser em sentido figurado e em situações mui especiais. Isadora Duncan também não. Tem seu charme, é verdade. Mas foi estrangulada pela própria echarpe, presa acidentalmente na roda do carro. Apelei para o lado cruel: Lucrécia Borges. Muito tarde. Minha amiga Verinha-Miragem já se apossou dela. Cleópatra?! Essa, nem pensar! Tenho pavor de cobra e gosto de ser original (ou pensar que sou). Cleópatra é o Napoleão das doidas. Não mesmo!
Parti para a Literatura. Florbela Espanca morreu jovem, Virginia Wolf se suicidou. Dorothy Parker, sempre depressiva, morreu no esquecimento, em meio a garrafas de wisky, vodcka, gim e tudo mais que tivesse alto teor alcoólico. Clarice Lispector, marvilhosa em sua magia, deixou-nos vitimada por um câncer de útero.Tudo muito trágico para meu gosto. Lady Godiva! Não. Essa não dá, por mais sexy que seja. Tenho auto-crítica. Não exporia em praça pública, mesmo que à noite e deserta, minhas estrias, celulites e gorduras localizadas. Percebam a sutileza. Disse gorduras e não gordurinhas localizadas. Entenderam? Pois é.
Sei não... Melhor será optar pela personalidade de uma obscura camareira da corte de Luiz XV. Uma mulher qualquer que a História tenha ignorado. Mas o simples fato de não fazer parte da história oficial da humanidade não implica em sua não existência. Aí é que está, me parece, o lado mais conveniente e interessante da personagem. Desconhecida, poderá inventar o que quiser. E a corte do Rei Sol é um cenário riquíssimo para a fantasia de qualquer meio doido. Intrigas políticas, romances secretos e não tão secretos assim, licenciosidade reinando nos corredores de Versalles. Figuras lúbricas e sem caráter, cortesãs que deixariam Messalina rubra!
Está escolhida. Serei essa camareira obscura e irrelevante. Poderei dizer que vi isso ou aquilo, que participei dessa ou daquela intriga, que patrocinei esse ou aquele romance ilícito, sem o receio da contradição. Porque, qualquer falha na composição do personagem, pode deixar à mostra minha porção sã. A idéia de ser desmascarada em público, de forma humilhante, não me agrada nem um pouco. Mesmo os personagens dos meio doidos precisam de uma certa coerência. E, cá entre nós, mentir dá trabalho até para maluco. Como sou preguiçosa demais para ficar me policiando todo o tempo, essa camareira sem nome cai perfeitamente. E no caso de uma escorregadela qualquer terei sempre uma saída:
— Sou meio doida. E daí?« Voltar