ENTRE PALAVRAS
Simone Salles
Simone, Si, é jornalista e escritora,
trabalhou em jornais e revistas da grande imprensa, como Jornal do
Brasil, Folha de São Paulo
e Correio Braziliense. Morou em Brasília 14 anos, onde também
foi secretária-adjunta de Comunicação Social do
Governo
Cristóvam Buarque.
Coluna de 16/4
(próxima coluna 26/4)
Por causa de Marguerite Duras
Toda tentativa
de explicarmo-nos sempre me parece vã. Ao tentar sintetizar
o que ou quem somos, deixamos à margem, deliberadamente
ou não, razões que desconhecemos as razões. Lançamos
mão da racionalidade e relegamos a intuição ao
confinamento dos pensamentos ilógicos. É assim com
o ato de escrever. Por quê escrevo? Por que certos humanos não
sobrevivem sem a escrita? Como eu, reféns das palavras? Pensei,
em certo momento, que era tão-somente uma compulsão da
Alma; uma necessidade do Espírito, uma imposição
do Ser.
Percebo, hoje, que é
mais.Transcende, ultrapassa toda e qualquer definição
baseada na lógica. Podemos enumerar em frases razoáveis,
encadeadas até formar parágrafos - pretensamente
esclarecedores -, os motivos que nos levam a escrever. Especularmos,
com indagações pueris lançadas ao nada, sobre as cem
mil sem razões dessa motivação. Criarmos e fundamentarmos,
com argumentos lúcidos, teorias e teses para justificarmos
essa condição existencial, esse vício
do qual somos presas. Jamais, porém, conseguiremos definir
em toda a sua magnitude, com precisão absoluta e incontestável,
essa compulsão que nos mantém cativos. Muito menos resumir
quem somos.
Divago sobre isso provocada
por uma mulher. Uma mulher-escritora. Por Marguerite Duras e seu pensamento:
"...Escrever é também não falar. É
calar-se. É gritar sem ruído." ...
Remôo essas três frases desde que as li, numa madrugada
com sono e excesso de trabalho. Trabalho escrito. Trabalho sobre a escrita.
Trabalho sobre trabalhos escritos. O sono foi-se. A concentração
desintegrou-se. As frases persistiram. Ressoam em minhas entranhas,
como eco de dúvidas e perplexidades a existência -
propósitos ou despropósitos?. Apenas três frases.
Três afirmações. Três enigmas para mim.
Será que, como eu,
ela é uma mulher açoitada por dúvidas, órfã
de certezas e opiniões absolutas? Será, como eu,
uma mulher atormentada, só perplexidade diante de tudo e todos?
Alguém que abdicou cedo demais das expectativas? Ou que
cedo demais foi soterrada pelo absurdo da realidade vivida? Tento
digerir, extrair delas toda sua essência. Absorver, gota por gota,
o significado de cada palavra, cada frase. Consigo apreender certo
sentido - provavelmente diverso do que ela tencionou dar
- em cada frase separadamente.
"... Escrever
é também não falar. É calar-se..."
Quando escrevo é o meu silêncio quem fala. Pois
que emudeci faz tempo. Se sou obrigada a falar, falo. Mas não
digo. E se sou obrigada a dizer, faço-o como ventríloqua
de mim mesma. "... É gritar sem ruído.
..." Sim, fazemos isso. Todo o tempo. Gritamos o desespero
das perguntas sem respostas. Debatemo-nos na busca de razão
para o que vemos e compreensão para o que não vemos. Buscamos
sentido nas coisas inexplicáveis e coerência no incompreensível.
Clamamos por um pouco de paz. Alguns segundos de trégua nessa
batalha encarniçada que travamos internamente. E é nesse
momento que a escrita surge.
Sinto que ao escrever, exorcizamos nossos demônios
e acalentamos nossos anjos. Pela catarse das palavras, por
alguns instantes, libertamo-nos de nossos fantasmas. Afugentamos temores.
Resgatamos lembranças. Concretizamos sonhos. Equilibristas
da Vida, isso é o que somos. Só isso. Nada mais. Deslizamos
pelo frágil arame da sanidade, tensionado sobre o abismo
dos delírios, das paixões, dos desejos. Descobrimo-nos,
então, habitantes de um mundo singular. Onírico. Lisérgico.
Real em sua irrealidade.
Nele, conceitos e normas inexistem.
Tudo é vago e incerto. Existimos noutra dimensão, onde
não há estradas, só descaminhos. Não
há tempo nem espaço. Não há lucidez
ou loucura. Levitamos no emaranhado de idéias
e sensações. Sem amarras. Sem fronteiras. Sem limitações.
Sem disfarces. Sem dissimulações. Sem adornos. Expomo-nos,
despidos e desarmados. Frágeis. Vulneráveis. Nesse lugar
de subversão, estamos pemanentemente nus. Nus diante
de nós mesmo. Nus diante de todos. Nus diante
disso que chamam vida. Mas são apenas instantes de fuga. Logo
somos sugados de volta ao mundo de cá. E recomeça a busca
interminável por respostas que não vêm.
As perguntas tornam-se uma
cantilena. Monótona. Intermitente. As indagações
permanecem: "É isso ?!" "É por
isso?!" Se há respostas, elas se negam a mim. Não sei
hoje. Não espero saber amanhã. Talvez, apenas as vislumbre
nos segundos finais de transição entre vida e morte. Se
assim for, não terá sido tarde demais.
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