ENTRE PALAVRAS
Simone Salles
Simone, Si, é jornalista e escritora,
trabalhou em jornais e revistas da grande imprensa, como Jornal do
Brasil, Folha de São Paulo
e Correio Braziliense. Morou em Brasília 14 anos, onde também
foi secretária-adjunta de Comunicação Social do
Governo
Cristóvam Buarque.
Coluna de 26/4
(próxima coluna 16/5)
Tu non est Petrus!
Pai,
Sou
Cristã. E Católica. Mas uma Católica
errática. Vós sabeis disso. Fui batizada na Santa Madre.
Fiz a Primeira Comunhão e confirmei minha Fé, aos 15 anos,
numa cerimônia simples, linda e inesquecível. Apenas
eu, minha madrinha, Vós e Vosso servo, D. Florêncio. O
lugar não poderia ser mais apropriado: a capela particular da
Diocese de Amargosa, – interior da Bahia, cidade natal de meus pais.
Uma capela simples, quase sem ornamentos, de madeira. Foi
num final de tarde de janeiro. Tinha 15 anos. Lembrais, Pai? Presenteastes-me
duplamente: concedestes-me um entardecer esplendoroso e a oportunidade,
ímpar, de receber o Sacramento da Crisma de um parente – mesmo
que distante.
Sabeis,
porém, minhas diferenças com a Santa Madre.
Seu conservadorismo excessivo, sua persistente e deliberada inadequação
às mudanças promovidas pelo Tempo, seu imobilismo diante
das profundas diferenças sociais e seu gosto pela ostentação.
Minha inconformidade tornou-me uma católica não praticante.
A idade e os tempos eram de rebeldia. Não fugi à regra,
Pai. Com os anos de afastamento e negação, a
Fé esgarçou-se. Distanciei-me de Vós
e da Igreja. Não sabia eu que a Fé ficara em mim, em estado
latente. Até eclodir décadas mais tarde, plena de Luz,
com o nascimento de meu filho. Mas essa é outra história.
E Vós, melhor que todos, melhor que eu mesma, conheceis os detalhes.
Estivestes comigo, conosco, em mim e nele todo o tempo.
Por
um breve período de euforia, minha e de muitos, acreditei que
a Igreja houvera encontrado o caminho de volta aos ensinamentos de Vosso
Filho. Acreditei que, finalmente, após séculos de desvios,
Roma retomara o exemplo Dele e trilharia o caminho que Ele, para cumprir
a missão que Vós traçastes, doara a própria
Vida: a opção pelos humildes, pelos homem de Fé,
pelos que crêem ser ver. A Igreja dos desvalidos. Desses homens
e mulheres que, na humildade e na Fé inabalável em Vós
e em Vosso Filho, encontram alento e esperança para lutar pela
sobrevivência. Presunção minha.
Sonhei,
Pai, eu e tantos e tantos outros, com a Igreja Católica redimida,
caminhando lado a lado com os Homens. Sofrendo nossas dores e oferecendo-nos
conforto e estímulo. Conosco lutando contra as injustiças
sociais-raciais-econômicas, imposta por humanos que esqueceram
de quem são Criaturas. Uma Igreja dedicada à pregação
da Fé e da Igualdade – não total, pois utópica
– entre os Homens. Acreditei na Igreja que não teme nem se exime
da luta santa por oportunidades para todos, indo ao encontro e
em defesa de Vossas ovelhas – ovelhas essas, que Vós, por intermédio
de Vosso Filho, confiastes a Pedro. Enfim, a Igreja Cristã, aquela
que não se furta à tarefa de Pastora a conduzir Vosso
rebanho.
Nessa
época, voltei à Igreja. Recordais desse tempo, Pai? Em
que eu era toda alegria e desprendimento? Sabia que a minha participação
não era passiva. Executava o Vosso trabalho e o fazia com a alma
repleta de uma alegria indefinível. Essa alegria, meu
Pai, infelizmente, durou pouco.Vi o sonho, o suor,
o esforço de tantos massacrados pelo temor – nada ignorante –
do Clero conservador. Essa horda de Cardeais, Arcebispos, Bispos, Núncios
e outros príncipes que, no fausto do Vaticano e das Arquidioceses,
apegam-se às riquezas e ao Poder e renegam, na prática
cotidiana, os ensinamentos de Vosso Filho.
Não
é a primeira vez que a Igreja é assaltada por interesses
materiais, venais, deploráveis. Foi assim, na Idade Média.
João XXII e seus seguidores, os Guelfos* (baseados em Bonifácio
VIII, cuja bula afirmava que o poder do Estado é ordenado e subordinado
ao poder eclesiástico), travaram uma guerra insana e nada santa
contra os seguidores do Imperador Luís II da Baviera e seus seguidores,
os Gibelinos**, defensor da ruptura entre Estado e Igreja – tese
apoiada pelos f ranciscanos (e por outros espiritualista,
a maioria de ordens extremistas como a dos Fraticellis*** ) em defesa
da igualdade no Clero e da pobreza da Igreja; a reafirmação
da humildade e do amor a Vós e Vosso filho, sem ostentação
ou riqueza. Como dissera Vosso Filho: “A César o que é
de César”. Assuntos materiais, seculares, que fiquem a cargo
dos homens. Nunca, porém, distante de Vossos olhos.
Naqueles
séculos de trevas, enquanto uns desejavam uma Igreja monárquica,
hierárquica e de poder divino; outros sustentavam, com teses
e argumentos, a necessidade de uma Igreja democrática, igualitária,
pobre e popular. Intrinsecamente espiritual. Os primeiros preconizavam
a união entre Igreja e Estado; os demais defendiam a separação
entre o Poder eclesiástico e o Poder civil. Luta encarniçada. A
doutrina Vossa e de Vosso Filho?! Apenas argumentos ad populum**** Batalha
sangrenta, Pai – Vós assististes a tudo e bem sabeis que não
houve vitoriosos. Apenas derrotados. Entre eles, a própria Igreja
e a Fé.
O
que estava em discussão, de fato, não eram os Vossos ensinamentos,
trasmitidos por Vosso Filho. Mas apenas e tão-somente a luta
pelo PODER. Sem falar, meu Pai, que nessa
guerra suja os meios justificavam os fins. E lembrar que em nome da
Santíssima Trindade milhares de inocentes foram torturados e
mortos pelo braço armado da Congregação da Doutrina
da Fé – a execrável Inquisição, levada às
últimas conseqüências por psicopatas, homens doentes,
inescrupulosos e sanguinários, mas que ostentavam as veste s
Católicas e ousavam falar em Vosso Nome e em Nome de Vosso Filho.
Por
vezes, me indago. O que diria e faria Cristo, nascido outra
vez como filho do Homem, após caminhar pelos corredores
do Palácio do Sumo Pontífice – a sede do Império
Católico – e saber que toda a riqueza e ostentação
ali acumuladas, através dos séculos e por meio
do genocídio de etnias, foram amealhadas em nome Dele e
do Vosso?! Que as intrigas do Poder ali proliferam como em qualquer
parlamento corrupto de uma republiqueta do Terceiro Mundo
– a nossa, brasileira, por exemplo?! Não sei,
mas tenho para mim: Ele seria tomado pela mesma Ira Divina, que O fez
expulsar do Templo os vendilhões, os mercadores que profanavam
Vossa Casa. Vosso Filho sabe. Vós sabeis. Por isso, busco razões
onde, em minha limitação, não vejo razões
e motivos. Muito menos justificativas.
O
sonho de uma Igreja Católica moderna em suas ações
e verdadeira em sua doutrinação morreu. A ala progressista
da Igreja Católica, sobretudo na América Latina, foi
dizimada nos anos 80/90 pela Corte de Roma, sob as ordens implacáveis
de um homem: Joseph Ratzinger – O Grande Inquisidor da atualidade.
Agora esse homem atende pelo nome de Bento XVI e detém o mais
alto posto da Igreja Católica. Como Arnaldo Jabour – ao menos,
estou em boa companhia – custei a entender o trabalho executado por
Karol Wojtila. Como ele, Jabour, fiz minha contrição e,
consternada, vi o fim de uma Era. Percebi que minha intolerância
fez-me míope ao observar o trabalho de João Paulo
II. Digo isso por que ele morreu? Óbvio. De outra forma,
não creio que teria distanciamento ou condições
de ver a obra que realizou em sua totalidade.
Observarei
Ratzinger, Pai. Distante da Igreja, mas não distante de Vós.
Dessa vez, apesar da absoluta antipatia que tenho por esse homem – recuso-me
a chamá-lo de Papa – tentarei ver com olhos os mais isentos
possíveis. Prometo tentar. Não sei se terei sucesso
sem Vossa ajuda. As primeiras palavras e gestos desse homem apenas
reforçaram o que já pensava sobre esse mortal.
Sim: mortal, falho, pecador – o cardinalato não transforma humanos
em santos! Nem mesmo papas tornam-se sagrados por ostentarem um anel
, quando deveriam, apenas, calçar as sandálias do Pescador.
A História da Igreja não permite ilusões. Há exemplo
melhor-pior que Alexandre VI, batizado como Rodrigo Borgia e mais conhecido
como o pai de Lucrezia Borgia?
Apesar
de agora ocupar o lugar de Pedro, não consigo ver
nesse homem chamado Josefh Hatzinger qualquer santidade, mínima
que seja. Vejo a ostentação do anel e a felicidade do
intrigante, que levanta os braços diante da multidão num gesto
evidente de quem comemora uma vitória. Jamais a humildade
das sandálias. Percebo, meu Pai, somente
o ser político de talento e inteligência indiscutíveis,
digno da astúcia de um Maquiavel. Um cortesão que soube
usar o Poder por meio de artimanhas e enredos, ao longo dos anos passados
a frente do Santo Ofício, para pavimentar seu caminho e
consolidar sua estrada até o trono papal. Mesmo que a custa
do Sonho de Igualdade Cristã de tantos e da Fé de
muitos. Ele, Pai, venceu a disputa, ganhou a eleição.
E a comemorou, sem pudor. Os milhões de católicos espalhados
pelo mundo viram não o sucessor de Pedro, mas o seguidor de Bernardo
de Gui.*****
Recorro
a Vós, Pai, em busca paz e alento. Peço-Vos: não
permitais que vejamos novamente a Igreja lançada às trevas
da Inquisição, em pleno Terceiro Milênio. Não
duvido de Vós, meu Deus, mas temo
pelo o que um homem com tanto Poder pode fazer contra os que Vos amam
de forma livre e alegre. Contra esses que ousam adorar-Vos sem submeter-se
às regras não estabelecidas por Vós ou Vosso Filho.
Contra aqueles que buscam nos ensinamentos de Cristo o estímulo
e a força para seguir em frente, confiante, nesse mundo caótico.
A
maioria dos humanos, Vós sabeis e sei que lamentais, já
nem se lembra de uma das mais belas frases-mandamento de Vosso Filho:
“Amai-vos uns aos outros”. A frase foi esquecida e seu sentido profanado
por guerras, egoísmos, torturas, injustiças, individualismo
exacerbado, consumo desenfreado e pelo materialismo – Baal desses nossos
tempos.
A
ti, Ratzinger, como Cristã-Católica, nego-lhe o meu reconhecimento:
Tu non est Petrus! Sobre ti, Joseph Ratzinger, que não és
a pedra-alicerce dessa Igreja, nada de mal há de erguer-se. Nem
sob teu jugo a Igreja de meu Pai há de sucumbir.
Perdoai-me
Pai, por esse desabafo. Perdoai-me, também, se em minha
ignorância e mortalidade não consigo apreender
o que Vós, agora, com a escolha desse homem, escrevestes em linhas
tortas para nós.
“... Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da
morte,
não temeria mal algum, porque tu estás comigo
;
a tua vara e o teu cajado me consolam ...”
Livro dos Salmos, 23 – 4)
Notas do autor:
* Guelfos - Inicialmente, partidários,
na Alemanha, até 1234, do Duque da Baviera, contra os Hoenstaufen,
ou gibelinos. Depois desta época, na Itália, deu-se o
nome de guelfos aos partidários do Papa, contra as pretensões
dos gibelinos, partidários do Imperador.
* Gibelinos - Nome dado aos partidários do imperador
na Alemanha na luta contra os apoiantes (guelfos) do Papa. Esta disputa
arrastou-se desde meados do séc. XII a meados do séc.
XIV.
*** Fraticellis - Espiritualistas sectários, em
sua maioria franciscanos, considerados posteriormente como hereges
e excomungados - os que espacaparam às fogueiras de Bernardo
Gui, o teórico e Inquisidor-mor da época.
**** Argumento ad populum - Sofisma em que se associam
ao objeto da argumentação elementos que tocam à
sensibilidade, às necessidades, às aspirações,
aos temores, etc., do público que se quer convencer.
***** Bernardo de Gui (séc. XIV) - Considerado
como um dos mais severos e sanguinários inquisidores. Autor de
manuais de torturas, por meio das quais se obtinha a "confissão"
do herege.
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