Simone Salles
Simone, Si, é jornalista e escritora, trabalhou em jornais e revistas da grande imprensa, como Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e Correio Braziliense. Morou em Brasília 14 anos, onde também foi secretária-adjunta de Comunicação Social do Governo Cristóvam Buarque.
Coluna de 16/8
(próxima coluna: 26/08)
Interiorana
O rio
Lembro-me de mim criança. Um outro eu. Noutra vida, noutro século, noutra Era. Menina - solta, livre - a caminhar por chão de pedras, pé-de-moleque. Menina de cidade grande a andar na única rua de uma minúscula cidade. Rua mesmo, calçadas, meio-fio, só lembro dessa. Sei que havia algumas outras. Minha memória, porém, recusa-se a registrá-las.
A partir dela, de cada lado do rio, labirintos de becos, estreitos, vielas. Casario em fileiras, de adobe caiado, pintado de todas as cores. Estranho arco-íris desenhado por paredes, portas, janelas de madeiras - toscas, grosseiras. Ruas de barro, meninos sentados nas soleiras, olhares vagos. Mulheres com cestos de roupas na cabeça. Por todo canto era possível sentir o odor típico dos fogões de lenha.
Armazéns de farinha e fumo, sacas empilhadas junto à parede. Atrás, galpões onde a mandioca era moída. Dunas de farinha até o teto. Nelas, brincava de escorregar. Sábado, dia de feira. Chapéus de feltro, botas com esporas, homens de couro. Rostos curtidos, peles de cobre, sorrisos faiscantes a mostrar dentes de ouro. Carros de boi, mulheres, carroças, meninos, tropeada de cavalos. Debruçada na varanda da casa, examinava todos e tudo.
Imaginava. Um homem, uma saga. Uma mulher, uma lenda. Um menino, uma fábula. Mercadorias espalhadas no chão ou em barracas de madeira. Carne de sol, umbu, melancia, abóbora, aipim, feijão de corda, ingá, milho, batata doce. De tudo um muito. Chinelos de couro, perneiras, sacolas e cestos de palha. Não era como as feiras de hoje. Arrumadinha, toldos listrados, balanças eletrônicas. Labirinto de barracas, produtos no chão. A feira começava de véspera. Sexta à noite candeeiros iluminavam as barracas.
Nos finais de tarde, durante a semana, detinha o olhar na curva, que as águas do rio faziam ao pé da árvore. Enorme. Um flamboiant inclinado sobre o leito do rio, a desafiar leis da Física, farto de ramas e favos. Raízes, como garras, expostas, mantinham-no preso ao solo. Ventos teciam na terra tapetes com suas flores amarelas, avermelhadas.
Nada para fazer. Horas vazias. Tempo parado no Tempo. Ocupava os dias, puro ócio e modorra, a engendrar absurdas histórias. Contos de fada sem princesas, sem bruxas, sem castelos, sem madrastas. Sentada, pernas cruzadas, na balaustrada da velha ponte. Esses contos e fábulas iam e vinham em minha cabeça. Sem ordem, sem princípio ou fim. Não sentia o terror, que agora me paralisa, de altura. Medo? De nada eu tinha! Não temia, então, minhas fantasias. Olhos fechados, atenta aos cheiros, distinguia odores. Mistura de aromas: jacinto, esterco, fumo, angélicas.
Águas turvas, rio escuro. Acreditava-o abissal. Nunca o vi revolto. Épocas das chuvas, das cheias, inundações. Suas águas subiam, escapavam do leito. O marcador, fincado na margem, assinalava as enxurradas. Não estava lá para vê-lo, ao transbordar, destruir muretas e calçadas. Aos meus olhos, hoje lembranças de mulher adulta, Corria sempre manso, misterioso, levando folhas, ramagens, gravetos.
Da janela, tia Gogói olhava, como a perguntar:
- O que terá essa menina?
Interrogações em suas pupilas. Não me fazia perguntas. Tio Antônio, bonachão, sorria. Piscava um olho. Cúmplice da filha, como cúmplice fora da mãe. Será que ele sabia dos mil sonhos por mim sonhados, alí, sozinha? Nunca voltarei lá. Outras águas turvas, escuras, do Jequiriçá passam sob a ponte. Sentirei, se voltar, a brisa da tarde, impregnada de cheiros?
Ainda sinto o odor adocicado dos jacintos, angélicas, damas da noite. Menina de alma interiorana. Mulher desencontrada na urbe. Lembranças sobrevivem ao tempo. Mas sucumbem à realidade. Que fiquem como está.
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