2ª quinzena de março
Há quase 30 anos fui rever minhas duas irmãs (do segundo casamento de meu pai) e aproveitei pra conhecer o famoso carnaval da Bahia. Era minha primeira viagem de avião. Mas, muito metida, do alto dos meus 23 anos de idade, achei que ia me virar bem em tudo. A tragédia começou quando fomos embarcar: o avião tinha mais remendos do que a roupa da boneca Emília do Monteiro Lobato. Pensei: “Essa droga vai cair! E se um pedacinho de remendo se despregar? Acho que aquele mais escurinho ali, meio alaranjado, cor de ferrugem. Ai, meu Deus! Nem seguro de vida eu tenho! Sou tão nova pra morrer; ainda to tão bonita; fiz regime, to tão gostosa!” E por aí se esvaiu minha segurança e minha calma: minhas mãos começaram a tremer. Sentei-me próximo à janela, pois não queria perder nadica de nada. Aquela coisinha redonda mais parecia uma escotilha de navio. “Será que em avião a gente também enjoa?” pensei. Ao meu lado sentou-se um verdadeiro “cavalheiro”: homem aparentemente dos seus 50 anos, bem trajado, perfume dos bons (isso eu conhecia), sapato de couro (pela cara, importado). Acomodou-se e afivelou o cinto. Essa parte eu vi com muita atenção e, já refeita do medo da possível queda do remendado avião, imitei o gesto do meu companheiro de viagem com a maior desenvoltura do mundo, querendo passar uma imagem de alguém muito viajado (como se isso contasse pontos). O cavalheiro foi extremamente simpático: era político, estava indo pra Brasília (onde o avião faria escala, antes de rumar para Salvador). Conversamos muito. Ele me mostrou alguns lugares (eu, fazendo de conta que entendia tudo, que conhecia, que estava distinguido tudo, àquela altura). Pousamos em Brasília, ele desceu, e eu fiquei, morrendo de vontade de ir ao banheiro. Mas quem disse que eu sabia desafivelar o tal cinto? Drama, tragédia e, o pior: o avião praticamente lotou em Brasília. Três italianos – dois homens e uma mulher – alterados por conta do álcool que consumiam, davam ares de confusão ao vôo e eu, cada vez mais “apertada” e sem saber o que fazer, como disfarçar o vexame de não saber me soltar daquela coisa. Fiquei de olho no companheiro do lado – desta feita, um jovem de seus 18 ou 19 anos, lendo, absorto em seu livro. E eu sofrendo. Pousamos em Salvador, sem que eu me soltasse daquela praga e a barriga inchada, até. Não conheci o banheiro daquela aeronave. Todos saindo em fila, alvoroço dos italianos escandalosos, eu, tonta, apertada, e o cidadão do lado nada de tirar o cinto pra que eu o imitasse e me acalmasse. Da janela já tinha avistado minhas irmãs ansiosas, olhando para a escada. Agonia crescendo, foi me dando até vontade de chorar. Então perguntei ao vizinho de assento: “Não vai descer?”, ao que ele, calmamente, sem despregar os olhos do livro, me respondeu: “Vou até Recife. Só desço na próxima escala”. Pronto: danou-se. E agora? Idéia brilhante! Optei por nova tática: “Se incomoda de me dar licença pois tenho muita bagagem de mão? Desculpe se o incomodo em sua leitura!”. Pelo olhar, ele queria me fuzilar, se pudesse, mas fez um intervalo em sua leitura, abriu o cinto com a maior facilidade do mundo. Imitei-o de pronto, até certo ponto, aliviada. Ele se levantou indo para o corredor e me dando passagem. Levantei-me, me fingi de atrapalhada com a bolsa e algumas revistas, agradeci sem olhá-lo nos olhos e praticamente fugi, com medo da bronca que ele pudesse me dar ou pela pergunta: “Cadê a bagagem de mão em excesso?”. Saí da aeronave ainda em situação desesperadora de aperto, de vontade de ir ao banheiro, mas, pensou o risco? E se eu não acertasse abrir e fechar a porta daquela coisa esquisita?