2ª quinzena de junho - Coluna 45
(Próxima coluna: 03/07)
DE CAMA E MESA
Os desejos ávidos despencaram da cama. Espalharam-se pelo chão, ao lado das mágoas, sobre o tapete, em cima dos chinelos. Quando ela se levantou, desceu à cozinha, descalça, pos água a ferver para o café e voltou para cima. No banheiro, após a higiene matinal, pintou os olhos disfarçando a lágrima, vestiu um sorriso postiço; trocou-se entre as sombras do quarto e tornou à cozinha.
Passou o café e serviu-lhe à mesa o pão dormido, a manteiga rançosa, o café retinto, o açúcar empedrado, o leite vencido. A toalha de xadrez miúdo perdia a cor em cada lavada; o bordado que ela mesma fizera, para o enxoval, esbranquiçado e sem vida. Os azulejos esbanjavam uma gordura amarelada; a torneira, com um pano amarrado em torno – pra tentar esconder o defeito –, pingava.
Depois do primeiro cigarro do dia, colocou feijão de molho, lavou arroz, descascou batatas e limpou a louça do café. Abriu a geladeira: nada! Olhou para ele na vã esperança de que propusesse alguma coisa, dissesse algo que fizesse o dia valer a pena ou aquela penúria fizesse sentido.
Ele olhava o teto encardido da cozinha; a lâmpada pendurada exibindo fios envoltos em fita isolante. Bufava. Deu um suspiro, levantou-se e subiu as escadas.
Ela fixou o olhar pela janela embaçada, olhando o nada. Ouviu a porta da frente batendo. Quem sabe o vento?
Fez o almoço, como de costume. Pratos e talheres no lugar, água fervida na garrafa trincada.
Sentou e esperou.
Tarde da noite, o sono a alcançou. Subiu e viu aquele corpo sem vida estendido ao lado dos desejos desmaiados, caídos na noite anterior. Um sorriso de escárnio escorria pelo canto da boca.
Ela sabia que ele não ia acordar. Então calçou os chinelos e decidiu dormir ao seu lado. Nas mãos os desejos pálidos despencados, a cabeça sobre o tapete.
As moscas em banquete à mesa posta na cozinha.