COLUNA DE THATY  MARCONDES 
Na área empresarial, trabalhou na implantação de projetos de administração, captação e aplicação de recursos, e ainda em redação e revisão de textos técnicos. Nascida em Jundiaí, reside atualmente em Ponta Grossa/PR, onde exerce o cargo de Conselheira Municipal da Cultura.

2ª quinzena de junho - Coluna 46
(Próxima coluna: 18/07)


Selma

Moça esforçada, Selma viera de Minas pra São Paulo, em busca de emprego e talvez, quem sabe, uma faculdade? Família modesta. Ela tinha verdadeira adoração pelos pais adotivos e prometera lhes dar uma vida melhor, em troca de todo amor recebido durante seus 23 anos de vida. Aparentava uma felicidade esfuziante, uma alegria incontida, um amor imparcial a tudo e a todos. Apesar disso, tinha momentos de profunda angústia e tristeza, onde se mostrava geniosa e intolerante – nessas horas, brigava, chorava, perdia o controle – mas logo se arrependia e, no máximo um ou dois dias depois, se desculpava, aos prantos, e de forma carinhosa. Dessa forma, não havia quem lhe quisesse mal.
Finalmente conseguira um emprego melhor, que lhe proporcionaria a possibilidade de fazer um cursinho pro vestibular de letras. Da Vila Mariana até o centro, era praticamente uma viagem. Dois ônibus, pois o prédio ficava na Praça das Bandeiras, e da Rua Tutóia não havia condução direta pra lá. Morávamos em casas germinadas , e todo dia, ao sair pro trabalho, ela cantava pra eu acordar, bem alto, lá do portão, o folclórico Acorda Maria Bonita. E às vezes completava: Está atrasada, vai perder a hora. E lá ia eu, esbaforida, tropeçando nas cobertas, correr me arrumar pro meu trabalho que também era longe, em Moema, mas eu só entrava às 10 h da manhã, hora e meia depois de Selma que, via de regra, se atrasava e era obrigada a pegar um táxi ao menos até o ponto do segundo ônibus.
Seis meses de trabalho e Selma foi promovida, o que significava um aumento substancial de salário e maior ajuda à família. Do cursinho, Selma já desistira, pois agora namorava firme e queria se casar. Moço bem de vida, família tradicional, estudar e trabalhar depois do casamento perdera o sentido, estava fora de cogitação, assunto resolvido em conjunto pelo casal. Selma queria muitos filhos, vida pacata, casa arrumada, posição. Talvez essas necessidades fossem conseqüência de sua situação de adotada – esse assunto era meio constrangedor para ela, que nem conhecia sua verdadeira mãe.
Foi na sexta feira, que um casal de amigos e colegas de trabalho foi à sua casa. À noite, entregar o convite de casamento. Estávamos juntas. Ela olhou o convite e desatou a chorar. Só então nos contou que havia brigado com o quase noivo. Dia seguinte, sábado pela manhã, o comércio aberto, Selma foi comemorar o novo salário nas lojas do centro velho de São Paulo. Lembro bem do vestido branco, alvo, meias brancas , sapato, calcinha, sutiã, tudo novo, tudo branco, parecia até roupa de noiva, não fosse o fato do vestido ser um mini, moderninho. Na volta, chamou pra mostrar e dizer que ia ligar pro namorado, fazer as pazes, que ele não haveria de resistir ao seu novo vestido, provocante e semitransparente. Teve que telefonar pro Rio, pois ele estava em viagem por problemas de saúde da avó e só retornaria no domingo à noite. Reataram pelo telefone, juraram amor eterno, fizeram planos de casamento, e marcaram o reencontro para a noite de segunda. No domingo, Selma ligou pra mãe, em Minas, pra uma amiga com a qual mal falava após uma discussão, pra um monte de gente. Dizia que estava feliz, que sabia que agora sim, sua vida ia mudar e seus pais poderiam ter, ao menos, uma casinha modesta pra não se preocupar com a velhice.
Segunda-feira cedo, Selma sai cantarolando pra mim, mas gritou a observação: hoje, finalmente, saio no horário. Ainda é cedo, vizinha. Levantei e olhei pro relógio: Selma deve estar louca, ou caiu da cama, pois ainda nem são oito da manhã! Aproveitei e cumprimentei meu irmão mais novo, antes dele sair pra escola, pois era seu aniversário, dia 01 de fevereiro.
Foi a última vez que ouvi a voz de Selma. Foi a última vez que Selma foi trabalhar. Ela tinha razão: tudo ia mudar e seus pais ficariam bem, com sua ajuda. Eles compraram uma casa, no interior de Minas, aplicaram o restante do dinheiro pra poder viver de renda. Ganho resultante da indenização às vítimas do incêndio do Joelma.
Não tive coragem de vê-la ou de ir ao seu enterro, mas me disseram que ela estava linda, com a roupa nova todinha branca, a mesma que ela comprara na manhã de sábado. Faleceu do coração, na hora em que constatou que estava viva e salva, quando jogaram leite sobre seu corpo. As poucas queimaduras, quase não se notava. Parecia estar sorrindo, com expressão de felicidade. No dedo, a aliança que o noivo trouxera da viagem, cumprindo promessa de amor feita pelo telefone.

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