COLUNA DE THATY  MARCONDES 
Na área empresarial, trabalhou na implantação de projetos de administração, captação e aplicação de recursos, e ainda em redação e revisão de textos técnicos. Nascida em Jundiaí, reside atualmente em Ponta Grossa/PR, onde exerce o cargo de Conselheira Municipal da Cultura.

2ª quinzena de março - Coluna 63
(Próxima coluna: 3/4)

O HOMEM QUE REESCREVEU DEUS

Era poeta. Depois resolveu que poesia era pouco: virou escritor de contos, de crônicas, romances, de tudo que se pudesse pensar. E em tudo ele sabia que era o melhor. Aliás, não apenas o melhor: era o único. Resolveu ir mais além e ousou ser Deus. Não: Deus era pouco. Ele estava acima de Deus, acima das imperfeitas invenções do Criador. Pois se ele tivesse feito o mundo, por certo o mundo seria melhor, mais bem estruturado, melhor distribuído. Haveria de ter sido autor de seres todos aos seus pés, estupefatos diante de sua grandeza onisciente, embora não onipresente, pois não ia ficar se chateando à toa, com detalhes intelectualmente diminutos, daqueles seres imperfeitos que esse Deus comum havia criado. Pra isso mesmo ele criara esse Deus banal, diário, à venda em qualquer supermercado da fé, em troca de míseros dízimos. Não: ele não queria dízimos. Não precisava deles. Tinha tudo o que precisava para seu sustento e manutenção física: um corpo anêmico, às custas de Traquinas, cervejas e Engov, pagos pela previdência privada até que ele tivesse idade suficiente pra que todos os outros seres – menos que ele – acordassem para sua suma importância e resolvessem prestar-lhe homenagens culinárias, diárias, televisivas, impressas em forma escrita, áudio-visual, sucesso nas bancas de revistas do mundo todo. Romântico cafajeste, jogava as amantes na cama com um tapa na cara, um poema de amor, os espinhos de uma rosa murcha e um bilhete na manhã seguinte: “Sou demais pra você, baby. Melhor me esquecer. Mesmo porque eu só me casaria com outro ser da minha envergadura. Como ainda não criei tal musa perfeita, não existe essa possibilidade.”
Casou-se 3 meses depois com a mocinha do filme de um Romeu qualquer, um reles plebeu sarado nas academias da periferia, porém inculto e sem malícia. Rezou ele próprio a cerimônia, em sua Igreja de culto mais que oculto, diante do altar de sua santa escrivaninha.
Não durou nem um ano: apenas alguns meses pra desenganada Julieta dos pagãos perceber que aquele deus acima do Deus comum também não atendia seus pedidos e não pagava suas promessas – muito menos as contas –. Incapaz de entender sua verdadeira identidade divina, ela o expulsou de casa. Ele não deixou por menos, tal ofensa à sua divindade: “Honra demais pra uma reles mortal comum pagar meus gastos e me sustentar. Sou demais pra você, baby. Fui”.
Saiu sem destino, sem rota, sem grana, apenas duas caixas com livros e uma muda de roupa. Almoçou Baudelaire, jantou Neruda e, antes de dormir no sofá da sala do amigo, abençoou o santo sebo da praça da cidade.
O amigo vendeu o sofá, a caixa de livros virou colchão, a calçada do sebo virou casa.
A previdência voltou a sustentá-lo, mês passado, assim que ele deu entrada no manicômio público. Diagnóstico: esquizofrenia. Começou apenas com mania de grandeza.
Depois de morto alguém imprimiu sua história e seus textos, guardados na gaveta da santa escrivaninha que aquela ímpia falsa Julieta ingrata vendeu num bric-a-braque local pra tirar parte do prejuízo causado pela sua fé. Ele finalmente conseguiu o Prêmio Jabuti... Nem Deus recebeu tal graça!

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