A mulher observava a água. Estava impaciente. Por certo: a água estava naquele ponto de pré-ebulição. Se ela se afastasse, as borbulhas haveriam de rapidamente começar a se amontoar; se ela ficasse impassível, nessa espera, demoraria mais. Aqueles minutos eram infindáveis. Parecia que a água tinha preguiça de borbulhar quando alguém a observasse assim de perto. Ela só pensava naquela perda de tempo que são os instantes antes da ebulição da água. Mas o que não faria por um gole de café àquela hora da manhã?

Resistiu a um acesso de irritação por conta da água. Tirou os olhos da panela, foi dar uma volta pra olhar o céu, tentar adivinhar qual seria a previsão do dia. Nuvens carregadas de preocupação sobre sua cabeça, apesar do sol da paixão, quase bege e semi-adormecido, tentar esmaecer essa previsão de futuro plúmbeo. Ao longe, próximo às colinas do horizonte, avistava-se uma nuvem de chuva ácida. E a água com a qual faria o café, seria ácida também? Como eles fazem pra tirar tanta porcaria da água? Não acredito que limpem tudinho. Mas a alta temperatura que a faz ferver acaba por matar todos os micróbios, bactérias, e demais bichinhos que nos trazem doenças, mas dos quais também somos constituídos. Natureza misteriosa. Deus é um cara engenhoso mesmo. E veja que piada criou: o homem! Ser contraditório, difamatório e comprobatório de suas extensas semidivinas habilidades. Mas temos tantas falhas! Como Deus pode ter feito seres à Sua imagem e semelhança com tantos defeitos? Seria Ele, também, um divino Ser defeituoso já de fábrica? Ou a empresa montadora errou em algum molde? Pior: além de errarem a encomenda de Ser tão maravilhoso, causando sérios defeitos de fabricação no produto final, esqueceram do manual de instruções e do guia do proprietário; desta forma, Deus anda lá perdido, sem saber ao certo o que fará conosco, tendo em vista que devem estar vencidas todas as garantias de fábrica. Acho que Ele desistiu de nós. Deve ter pensado, com seus divinos botões, que melhor seria deixar esse mundo à deriva, à sua própria sorte. E como castigo nos enviou a morte, pra que tentemos nos redimir dos pecados, na hora da própria, amém.

A água ferve, finalmente. A mulher passa o café, toma uma xícara do líquido, acende um cigarro, e recomeça sua rotina sempre tão isenta de surpresas. É terminada a hora de reflexão. O pão não conversa sobre filosofia e a santa manteiga não acredita em Deus. Qualquer dia ela ainda escreveria um livro sobre suas reflexões matinais. Ou seria melhor sobre culinária?...