1ª quinzena de dezembro de 2008 - Coluna 121
(Próxima coluna: 18/12)
A moça do "Reçaique"
Catadores, os verdadeiros ecologistas do Brasil
Toda semana vejo uma movimentação em determinados dias aqui em casa. A campainha soa (normal), a cachorrada faz escândalo (normal, quando chega alguém), e é um tal de saquinho pra cá, caixa pra lá, um trânsito além do normal de pessoas indo e vindo no trajeto portão/fundos da casa; uma conversação de mulheres animadas, e eu sempre percebo a voz de minha mãe, da nossa "secretária do lar" e outra voz estranha, fraquinha. Mas, sempre no mundo da lua, ou com afazeres outros que me fazem acreditar ser algo mais importante e superior à balbúrdia dessas ocasiões, nunca me aproximei do fato para averiguação, nem que por mera curiosidade.
Semana passada minha mãe havia saído pela manhã para uma caminhada e a secretária do lar, cujo nome é Nilce, havia faltado por um motivo qualquer desses de doença em família ou algo do gênero. Ali pelas 10h30min da manhã a campainha tocou e fui atender, averiguando antes, pela janela da frente, quem chamava. Uma moça simpática, magrinha, de voz fraca, respondeu:
— Eu vim buscar o "reçaique" da semana.
Como eu não havia entendido, perguntei o quê, de fato, ela tinha vindo buscar. Embora se mostrasse pouco à vontade comigo, repetiu, como quem diz uma frase de efeito bonita, importante, de gente estudada e inteligente:
— Eu sou a Solange, a moça do "reçaique". Toda semana venho buscar garrafa de "prástico", latinha, papel e papelão e o que o povo não usa mais, que a gente sempre dá um jeito e aproveita ou faz dinheiro.
Com a curiosidade aguçada, resolvi acompanhá-la em seu habitual trajeto dos fundos da casa até o seu estranho carrinho estacionado na calçada, fazendo mil perguntas. E ela foi me contando o destino de cada coisa que minha família desperdiça, ajudando no processo de poluição mundial.
— O prástico de garrafa eu vendo pra uma moça que faz artesanato e até móvel; o alumínio da latinha, levo pro homem que "amassa elas" e vendo por quilo que eles reforma e faz tudo de novo; sacolinha prástica, papel e papelão eu vendo a quilo. Bom... Quando tem alguma coisa a mais, depende, né? Se for móvel bom eu vendo, quebra-galho eu aproveito em casa. Mas tudo sempre tem uso. Melhor que ir catar no lixão.
Não me contive e quis saber tudo, desatando a fazer várias perguntas, e Solange foi me contando um pouco da sua vida sofrida e sobre seu trabalho.
— Óia, dá pra ganhar mais do que se eu trabalhar por dia, e faço meu horário, porque com criança pequena não é toda hora que a gente pode sair pra trabalhar. Dá pra viver sim. Com pouco, mas dá pro gasto. O marido largou eu mais duas criança pequena, que a mais velha já ta inté casada, tem 16 ano. Mas a mãe veio morá comigo, e a gente se acertamo. Ela me ajuda eu oiando as criança, fazendo comida. Às veiz tem que levá um fio no médico, doente, ela fica em casa com a outra. O duro é pagá o dono do depósito, o aluguel da gaiota. Quando chove então, é um tormento. Não tem reçaique e as criança traquinando em casa sem o que fazer. Mas é bom ser carrinheira. A gente limpa as rua, e já ouvi dizer que a gente melhora o mundo e até o ar pra respirá.
Aquilo me fez pensar em como somos irresponsáveis, desumanos. Uma mulher sem estudo faz mais pela preservação do meu mundinho perfeito do que eu.
Com o interesse despertado, quis saber mais sobre essa atividade e fiz uma rápida pesquisa entre os catadores de reciclável e algumas pessoas conhecidas. Sofrendo com o preconceito da população, os catadores fazem o serviço fundamental na preservação do meio ambiente: a coleta seletiva. Para recolher material nas ruas esses trabalhadores se submetem a um sistema quase servil de trabalho, recebem dos atravessadores (pessoas que compram recicláveis, estocam e vendem em grandes quantidades para as recicladoras) os tais carrinhos ou pequenas carretas para carregar papel, também chamadas de "gaiotas", se comprometendo a vender o que for coletado para tal atravessador, que paga um preço muito abaixo do que recebe das indústrias recicladoras. Isso acontece livremente, pois o preço das gaiotas é muito alto para a renda dos catadores, que não conseguem ter a sua própria, se rendendo às exigências dos atravessadores para poder trabalhar.
Mas, como bem o disse Solange, a moça do "reçaique", dá pro gasto e retira famílias do lixão. Além de tudo, aplaca meus arrependimentos e me redime de pecados cometidos contra a mãe natureza.