Refém da madrugada, o galo forja a brasa da manhã. Seu canto, lance solitário, rasga a paisagem. O esforço trava na garganta exausta. Cercada pela indiferença, a sentinela se alimenta de dúvidas. É um mistério que ainda se entregue ao ofício. Poderia abaixar a crista e insistir no sonho, mas prefere ser garimpeiro de brita. Romper os dias que nascem escuros nas promessas, se transformar num adivinho de tocaias, enfrentar pânicos ameaçados por ciclones, molhar-se em súbitas tempestades. Nem sempre o ano tem a sorte de ser maio.
O galo é a impaciência que vem a furo. Não confia, não desiste, não delega. Ignora as luzes artificiais que tentam mascarar o tombo do abismo sobre o mundo. Não deixa que permaneça impune a mudança do dia para o poço que torna a criação indistinta. Tudo se confunde ao redor. Há submissão, enquanto se instala a certeza de que não veremos mais a separação entre o morro e a lua, a rã e a coruja. Quando tudo dorme, é comum perder a esperança, acostumar-se ao luxo de esquecer.
Talvez seja a memória que torne o galo prematuro. Ele se recorda e arrisca uma conversa com o destino, num jogo mortal de cabra-cega. Os duendes ocultos repetem histórias de assombração, tentando dobrar o teimoso. Há um desespero no peito, que vomita a insubordinação. Ainda é cedo, no entanto. O breu não sucumbe ao primeiro intruso.
O galo torce o quebranto, ensina a sobrevivência. Ele se espicha, cisca o que tem de mais fundo, se supera. E aos poucos vai acostumando o ambiente à batida do seu pulso, que pressiona a vigília. Cria curiosidade entre os vivos, que torcem para ver quem ganha. No duelo desigual, a tampa noturna luta de um lado. No outro, o cantar do galo ganha ritmo, e aos poucos orquestra o ouvido adormecido da multidão, faminta de luz.
Quando convence que é possível erradicar a cortina de grosso veludo, opera-se o milagre. Os pássaros são os primeiros a ouvir. E depois que os ninhos são abandonados em favor do vôo e do sopro, tudo pode acontecer. Até mesmo o sol, que tinha desistido de nos assistir, e partia para outras paragens, volta a espiar.
O sol é apaixonado pela ilha, mas, amante ingrato, abandona a cama depois do crepúsculo. Só mesmo o canto do galo para pô-lo de sobreaviso, reverter sua decisão de ir embora. O galo o convence que a ilha é o seu estúdio. E que sempre é possível resgatar a arte, mesmo que haja o perigo do transe fácil, a emoção flácida, a comunhão amarga.
O galo ensina o sol. Fala da contundência da missão a que foram destinados. Mostra a praia, a tela do mar e seu múltiplo azul, seu verde indeciso. Esmeraldas e violetas vão desfiando a manhã agora ensolarada. O galo então se recolhe à sua faina matinal. Debulha o trigo, roça as nuvens, planta figo. Deita depois, quando a tarde desce em direção aos navios.
Na noite seguinte, abre o olho, alarmado, e pergunta o que nem a Lua sabe responder. Esse enigma, o escuro, o coloca novamente em guarda. Lança de novo o primeiro grito. Prevendo o desenlace, a madrugada treme de pavor. Ela sabe.
O galo puxa o dia não como um fardo, mas como a nota musical que nos conduz à liberdade. Não como hábito, mas como descoberta. Não como aventura, mas como lastro. É dia porque alguém se insurge. É de manhã, porque soou o alarme. |