SACIEDADE DOS POETAS VIVOS DIGITAL - VOL. 11

FERREIRA GULLAR - (José Ribamar Ferreira) - S. Luis/MA, 10/09/1930, radicado no Rio de Janeiro. Jornalista, ensaísta, crítico de arte, professor, teatrólogo. Foi diretor da Fundação Cultural (DF), no Rio e, em 1961, integrou o movimento do Centro de Cultura Popular da União Nacional dos Estudantes, sendo exilado de 1971 a 1978. Dezesseis livros de poesia, entre os quais: Um pouco acima do chão (1949), A luta corporal (1954, livro que abriu caminho para o movimento da poesia concreta, do qual participou e com o qual rompeu para, em 1959, organizar e liderar o grupo neoconcretista, cujo manifesto redigiu e cujas idéias fundamentais expressou no célebre ensaio Teoria do não-objeto), Poemas (1958), Dentro da noite veloz (1975), Poema sujo (1978, escrito em Buenos Aires, no exílio), Na vertigem do dia (1980), Barulhos (1987), O formigueiro (1991), Muitas vozes (1999, Prêmio Jaboti de Poesia de 2000 e o Prêmio Alphonsus de Guimarães, da Biblioteca Nacional), O rei que mora no mar (2001). Em 2002, é indicado ao Prêmio Nobel de Literatura por nove professores titulares de universidades de Brasil, Portugal e Estados Unidos. Lança “Relâmpagos”, reunindo 49 textos curtos sobre artes, abordando obras de Michelangelo, Renoir, Picasso, Calder, Iberê Camargo e muitos outros. Em 2010 publicou Em alguma parte alguma e foi agraciado pelo Prêmio Luís de Camões/edição 2010 – o mais importante prêmio literário da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, criado pelos governos  do Brasil e de Portugal. (*)

Página individual de poesia em Blocos Online


           Bananas podres

Junto ao mar

Memória

     

           Praia do Caju

O poço dos Medeiros

A avenida

 

Bananas podres

Como um relógio de ouro o podre
oculto nas frutas
sobre o balcão (ainda mel
dentro da casca
  na carne que se faz água) era
ainda ouro
o turvo açúcar
vindo do chão
                        e agora
ali: bananas negras
                         como bolsas moles
                        onde pousa uma abelha
                        e gira
                        e gira ponteiro no universo dourado
                        (parte mínima da tarde)
em abril

             enquanto vivemos 

E detrás da cidade
(das pessoas na sala
ou costurando)
às costas das pessoas
à frente delas
à direita ou
(detrás das palmas dos coqueiros
alegres
e do vento)
feito um cinturão azul
e ardente
o mar
batendo o seu tambor 

que
da quitanda
não se escuta 

Que tem a ver o mar
com estas bananas
                              já manchadas de morte?
que ao nosso
lado viajam
para o caos
                   e azedando
e ardendo em água e ácidos
a caminho da noite
vertiginosamente devagar? 

Que tem a ver o mar
com esse marulho
de águas sujas
fervendo nas bananas?
com estas vozes que falam de vizinhos,
de bundas, de cachaça?

Que tem a ver o mar com esse barulho? 

Que tem a ver o mar com esse quintal?
Aqui, de azul,
apenas há um caco
de vidro de leite de magnésia
(osso de anjo)
que se perderá na terra fofa
conforme a ação giratória da noite
e dos perfumes nas folhas
da hortelã
                   Nenhum alarde
nenhum alarme
mesmo quando o verão passa gritando
sobre os nossos telhados 

Pouco tem a ver o mar
com este banheiro de cimento
e zinco
           onde o silêncio é água:
           uma esmeralda
           engastada no tanque
           (e que
                     solta
           se esvai pelos esgotos
           por baixo da cidade)
Em tudo aqui há mais passado que futuro
mais morte do que festa:
                                        neste
banheiro
de água salobra e sombra muito mais que de mar há de floresta
         muito mais que de mar
                                                    há de floresta
Muito mais que de mar
neste banheiro
há de bananas podres na quitanda 

e nem tanto pela água
em que se puem (onde
um fogo ao revés
foge no açúcar)
do que pelo macio dessa vida
de fruta
inserida na vida da família:
um macio de banho às três da tarde 

Um macio de casa no Nordeste
com seus quartos e sala
seu banheiro
que esta tarde atravessa para sempre 

Um macio de luz ferindo a vida
no corpo das pessoas
lá no fundo
onde bananas podres mar azul
fome tanque floresta
são um mesmo estampido
um mesmo grito 

E as pessoas conversam
na cozinha
ou na sala contam casos
e na fala que falam
(esse barulho)
tanto marulha o mar quanto a floresta
tanto
fulgura o mel da tarde 
- o podre fogo -
                          como fulge
a esmeralda de água
                           que se foi 

Só tem que ver o mar com seu marulho
com seus martelos brancos
seu diurno
relâmpago
que nos cinge a cintura? 

O mar
          só tem a ver o mar com este banheiro
com este verde quintal com esta quitanda
          só tem a ver
          o mar
com esta noturna
terra de quintal
onde gravitam perfumes e futuros
           o mar o mar
com seus pistões azuis com sua festa
          tem a ver tem a ver
com estas bananas
          onde a tarde apodrece feito uma
carniça vegetal que atrai abelhas
varejeiras
          tem a ver com esta gente com estes homens
que o trazem no corpo e até no nome
          tem a ver com estes cômodos escuros
com esses móveis queimados de pobreza
com estas paredes velhas com esta pouca
     vida que na boca
     é riso e na barriga
     é fome 

No fundo da quitanda
na penumbra
                     ferve a chaga da tarde
e suas moscas;
em torno dessa chaga está a casa
e seus fregueses
o bairro
as avenidas
as ruas os quintais outras quitandas
outras casas com suas cristaleiras
outras praças ladeiras e mirantes
donde se vê o mar
nosso horizonte

________
(*) Todos os poemas desta antologia in Toda Poesia 1950-1980. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1980 (exemplar numerado, nº 1260).

Efigênia Coutinho

Ferreira Gullar

 
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