A arte de escrever cartas

Já repararam como têm aparecido ultimamente livros com a correspondência de pessoas famosas? As cartas trocadas entre Fernando Sabino e Clarice Lispector. Idem, entre Fernando e Mário de Andrade. A correspondência de Vinicius de Moraes. A de Elizabeth Bishop, poeta norte-americana que viveu no Brasil. Documentos importantes, que nos falam de vidas e de obras significativas; testemunhos históricos de valor. Mas a pergunta se impõe: não seria a publicação dessas coletâneas manifestação de uma antecipada nostalgia?
Escrever cartas já não tem o mesmo significado de décadas atrás. Primeiro o telefone, depois a Internet mudaram a comunicação interpessoal. A carta cada vez mais dá lugar à sintética mensagem, ao recado (e com várias abreviaturas). Mensagens e recados que são, de outra parte, altamente descartáveis. E-mails a gente deleta (e pela quantidade de e-mails não desejados, deleta-se cada vez mais). Conversas pelo telefone só são gravadas pelos grampeadores. A carta, com seu sentido de permanência, pode estar no fim.

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O que será uma pena. Porque as pessoas sempre valorizaram e respeitaram a correspondência. Eram numerosos os manuais que ensinavam as pessoas a escrever cartas. Havia fórmulas clássicas: "Espero que esta vá lhe encontrar com boa saúde, bem como a todos os seus". Mais: quem não sabia escrever (e muita gente não sabia escrever) podia contar com a ajuda de pessoas que, por amizade ou profissionalmente, prestavam esse serviço - é o papel da personagem vivida por Fernanda Montenegro em Central do Brasil. Não se trata só de ficção: meu amigo, o escritor Antonio Torres, escreveu muitas cartas para os habitantes da pequena cidade baiana de Junco, onde nasceu e onde passou sua infância.

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Carta era uma coisa séria, comprometedora, mesmo. Cena clássica nos filmes de outrora: o marido está mexendo nas coisas da mulher recentemente falecida e dá com um maço de cartas, cuidadosamente amarradas com uma fita (essa fita é indispensável). Mãos trêmulas, desfaz o laço, começa a ler ansiosamente e descobre que a mulher teve um caso. Claro que tal revelação poderia ocorrer através da Internet, mas esta sempre pode ser desmentida - não existe o problema da denunciadora caligrafia.

Há outros dramas. As cartas que não são entregues. As cartas que chegam tarde demais. E, a mais patética de todas, a carta do náufrago, enfiada numa garrafa e jogada ao mar, entregue portanto aos caprichos do destino (e das correntes marítimas).

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Grandes cartas balizaram a história da humanidade. As cartas do sábio Sêneca. As epístolas de São Paulo. As cartas de Abelardo e Heloísa, cuja paixão foi atalhada brutalmente. A carta de Pero Vaz de Caminha falando sobre "a terra em tal maneira graciosa". A carta em que sir Walter Raleigh, prestes a ser executado, despede-se da esposa ("Mando-te o meu amor, para que o guardes quando eu esteja morto"). As cartas de Sóror Mariana Alcoforado, testemunho do amor proíbido da freirinha portuguesa por um oficial de cavalaria. As cartas de Van Gogh ao irmão Theo. As Cartas a um Jovem Poeta, de Rilke. As cartas escritas dos campos de concentração. Textos pungentes, que nos galvanizam, senão pela forma literária, então pela autenticidade.

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E as nossas cartas? Semanas atrás, no Rio de Janeiro, fui procurado por um amigo da juventude. Ele tinha um presente para mim: um maço de cartas que eu havia lhe escrito.

Agradeci muito o inesperado presente, mas confesso que não tive ânimo para reler essas missivas. Sei do que falo ali: falo das dores do amor, falo da vontade de mudar o mundo, falo da minha revolta juvenil. Falo longamente, caudalosamente. Aí vem a pergunta crucial: essa ainda é a minha voz? Será que quero reencontrar-me com aquele adolescente inquieto que eu era?

Ainda não tenho resposta para esta questão. Se alguém a tiver, favor enviá-la. Por carta, naturalmente.

Moacyr Scliar
20/07/2003

Fonte: http://ecoarte.blogspot.com/

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