Testemunho viril de um esforço de entendimento de ambas as partes, as cartas trocadas entre Mário de Andrade e o poeta e escritor santista Rui Ribeiro Couto são pontuadas pelo malogro, quer nas interpretações de caráter literário, quer no plano da comunicação. Entre os missivistas incluídos na Coleção CorrespondênciaMário de Andrade, editada pelo IEB/Edusp, Ribeiro Couto é talvez dos que mais instigaram o autor de Macunaíma a um diálogo arrojado, violento até, penoso, muitas vezes, com alguns lances divertidos de permeio.
Modernistas. O modernista Ribeiro Couto - o suave modernista do poema "Surdina", em que se lê: "Minha poesia é toda mansa./ Não gesticulo, não me exalto.../ Meu tormento sem esperança/ Tem o pudor de falar alto." - foi, ao mesmo tempo, o sorrateiro renovador no poema "Cinema de arrabalde", em que transgride a seu modo, profunda e suavemente, ao introduzir personagens de um cotidiano desglamourizado, incorporando à nossa poesia, como notou Rodrigo Octavio Filho, "os motivos de vida simples, o cotidiano, sem nenhuma ênfase e nenhuma oratória": "A este modesto cinema de arrabalde/ Vêm famílias burguesas todas as noites,/ Com os chefes pesados à frente do bando./ Trazem meninos de colo que choramingam./ E ficam atentas, derramadas nas cadeiras,/ Vendo os dramas da tela, perseguições e turbulências,/ Vivendo angustiadamente a ilusão daquelas vidas."
Sobre esse poema, publicado primeiramente na revista Klaxon, em 1922, e depois incluído em Um homem na multidão, de 1926, afirmou Sérgio Buarque de Holanda que "Ribeiro Couto em seus versos inéditos fala por exemplo nos freqüentadores do cinema do arrabalde fazendo-nos interessar por eles, entre outros, o desinteressante senhor subdiretor da Terceira Repartição de Águas conjuntamente com sua senhora e os filhos, com uma naturalidade que espanta".
Opondo-se ao timbre retumbante do "Prefácio interessantíssimo", de Mário, em seu Paulicéia desvairada, ou mesmo à ironia feroz de Bandeira no poema "Os sapos", Ribeiro Couto subvertia mansamente, sem causar nenhum impacto, mas fazendo mudar a perspectiva poética do leitor, como aconteceu com Afonso Arinos depois que leu seus poemas, recomendados por João Ribeiro.
Marcado pelo sentimentalismo de seus primeiros versos, desprestigiado pela crítica, que o esqueceu durante os longos anos em que morou fora do Brasil, seria no futuro identificado basicamente pelo romance Cabocla, de 1932, adaptado para novela de televisão; pela autoria da expressão "homem cordial", que Sérgio Buarque de Holanda dotou de caráter sociológico; e finalmente por ser representante do Penumbrismo.
Ribeiro Couto foi discreto, mas convicto, na sua forma de aderir ao Modernismo. Dessa maneira recusou-se, como Manuel Bandeira, a participar das festividades da Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo, ao mesmo tempo que assumia colaboração intensa em jornais e nas revistas divulgadoras da nova estética. Mas Couto não só reconheceu - é o que prova esta correspondência - em Mário de Andrade a figura "de libertador, a de homem-data, homem-marco a indicar fim e começo de épocas", como revelou agudeza crítica ao interrogar, sem com isso esconder opinião, ainda em 1925: "V. é o criador do movimento, e o seu melhor crítico. Creio, porém, que V. não vai passar à história como poeta. Sua obra fundamental, sua obra máxima, sinto, será outra. Quem sabe se um romance? Quem sabe se uma obra de crítica? Pode ser um livro de poemas. Porém, duvido."
A correspondência. A Correspondência Mário de Andrade & Ribeiro Couto consta de 61 documentos. Trinta e oito da parte de Ribeiro Couto, sendo 34 cartas ou bilhetes, três cartões de visita e um cartão postal, todos localizados no Arquivo de Mário de Andrade, no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP). Cobrem o período de 20 de setembro de 1922 a 9 de agosto de 1942. De Mário a Couto, são 23 cartas, vinte das quais localizadas no arquivo de Ribeiro Couto, sob a guarda do Arquivo-Museu de Literatura da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e três encontradas no arquivo do advogado e bibliófilo Manuel Portinari Leão, na mesma cidade. Cobrem o período de 28 de dezembro de 1923 a 20 de agosto de 1942. As encontradas no arquivo Manuel Portinari são as datadas de 28 de dezembro de 1923; 29 de novembro de 1925 e 20 de dezembro de 1926.
Vale ressaltar a diferença de tratamento que mereceram, por parte dos herdeiros dos correspondentes, os respectivos arquivos: enquanto Mário de Andrade teve, como se sabe, seus papéis cuidadosamente organizados por ele próprio e conservados pela família, de acordo com seu desejo expresso, Ribeiro Couto, diplomata, morando em vários países diferentes, perdeu, no decorrer das mudanças, muito de seu patrimônio em papéis. Assim como Mário, não teve filhos, mas, casado, deixou viúva d. Menina, que, de volta ao Brasil, onde fixou residência em Teresópolis, vendeu parte dos documentos. Outro tanto seria depois resgatado por Francisco de Assis Barbosa. Na verdade, restos do que sobrara de uma inundação na casa e que constitui o arquivo hoje guardado na Casa de Rui Barbosa.
Desse modo, o arquivo a que se tem acesso é desigual e se constitui, inicialmente, de monólogo epistolar que, da parte de Ribeiro Couto, vai de setembro de 1922 a setembro do ano seguinte, quando só então encontramos a primeira carta de Mário de Andrade conservada nos arquivos do interlocutor. Falha significativa, justamente naqueles anos agitados!
Apaixonados pelo Brasil, pela literatura e pela vida, Mário de Andrade e Ribeiro Couto insistiram durante vinte anos, de 1922 a 1942, num diálogo epistolar mantido, curiosamente, mais pelas diferenças do que pelas afinidades. Com intensificação no ano de 1925, a troca de cartas declina a partir de 1928, depois que Ribeiro Couto se sentiu ferido pelo artigo que o amigo publicara sobre seu livro de contos Baianinha e outras mulheres, e em que julgou haver o autor da crítica dado interpretação depreciativa, diferente daquela que lhe fora feita por carta.
Ao iniciar-se a correspondência, era Ribeiro Couto o autor de O jardim das confidências, de 1921, poesia que não agradara a Mário, de que é prova a apreciação feita por este, a lápis, na última página do seu exemplar, conservado na sua biblioteca, hoje no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB): "Não vai nem vem. O almofadismo langoroso, sentimental. Romântico vestido de silêncio. Carnaval elegante, sem barulho, sem vida. [...] Um pouco de graças femininas. Muito de elegância e distinção. Dois poucos de sensibilidade: um do autor outro dos poetas simbolistas. De vez em quando a nota deliciosa, sinceramente exposta, vibrante. Então o poeta tem uma sensibilidade que não são dois poucos, é grande. Mas ler duas vezes o livro é impossível."
Mário, por sua vez, no fim do ano de 1922 colhia as impressões, entusiastas ou não, mas jamais indiferentes, sobre o seu Paulicéia desvairada, obra que Manuel Bandeira reputaria "o primeiro livro integralmente moderno que aparece no Brasil. Todos os outros foram de transição". É nesse momento que Ribeiro Couto, recolhido em Campos do Jordão para curar-se de tuberculose, escreve ao autor de Paulicéia longa carta, detalhadíssima, comentando cada poema do livro. Crítica de acordo com seu temperamento transbordante, exaltado. Mas Mário - e é aqui que se delineia a incompatibilidade entre os dois - desacreditou do entusiasmo do interlocutor, segundo confidenciaria a Manuel Bandeira, em carta de 31 de maio de 1925: "É o pior crítico do mundo, quando critica alguém na realidade se observa a si mesmo. Diz que gosta da Paulicéia mas o gosto que tem por Paulicéia me irrita. Não compreendeu absolutamente o meu livro. O que o comove lá dentro são uns detalhes ocasionais, umas notinhas rápidas, umas pequenices de cor local de observação de psicologia pequenininha, rolas da Normal1, garoa, ora sebo!"
Como se vê, a amizade in fieri se alicerçava na discordância que dominaria todo um esforço de compartilhamento das crenças que os dois, de fato, defendiam com relação às mudanças estéticas por que passavam as letras brasileiras. Se, por um lado, havia comunhão de idéias, a expressão individual, distinta, não raro causava divergências profundas entre os dois. Do ponto de vista psicológico, sobretudo, seus temperamentos, próximos em tantos modos, não logravam harmonia, ainda que demonstrassem disposição para o entendimento.
Unia-os um profundo entusiasmo no viver, um gozo da existência nas suas possibilidades mundanas, nos prazeres do bom vinho. Aproximava-os a vibração pelas descobertas, pelas lutas: se um foi embaixador do Brasil, divulgador dinâmico da literatura brasileira na Europa, o outro, inaugural, viveu com naturalidade na sua embaixada da rua Lopes Chaves, em São Paulo, onde construiu, pela epistolografia, uma obra monumental, feita de análises, reflexões, conselhos, dentro do melhor espírito da diplomacia. Ligava-os o senso de humor, o achado de expressões deliciosas, em que não faltava a censura pelo que havia de mais profundo a afastá-los: "Ciao, bichão adorável!", escrevia Couto depois de uma "descascação" feita por Mário, que a certa altura não o poupava: "Ora vá se catar, seu Couto!"
Assim como acontece na Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, organizada por Marcos Antonio de Moraes, há, nesta prosa epistolar, uma intenção manifesta de sinceridade absoluta nas críticas às respectivas criações. Avisava Couto já em carta de 1922 que "quando entre dois rapazes, que fazem arte, é impossível a revelação natural das verdades pessoais secretas, é melhor que eles nunca se falem - e sobretudo não se apertem as mãos". Desse ponto de vista, portanto, as divergências, expostas com rigor, eram razoavelmente suportadas: Mário respondeu com veemência à crítica violenta que lhe fez o amigo sobre o poema "Noturno de Belo Horizonte"; revidou com a sua implacável lucidez ao ataque de ser pretensioso por querer fazer "brasileirismo", provando, neste caso, a leviandade do julgamento de Couto, que lhe atribuía o orgulho de ser o único a fazer brasileirismo quando, na verdade, ele, Mário, fazia-o, sim, mas jamais reivindicara para si o privilégio de exclusividade; e até mesmo à acusação de fazer política literária soube Mário replicar sem, pelo insulto, declarar-se inimigo. Pelo contrário, respondia, em carta de novembro de 1925: "No mais: te adoro pela carta. Isto é: te adoro por ela todinha até com a malvadeza que me feriu, te adoro porque gosto de você, sinto você, queria conversar agora com você."
Gosto verdadeiro, esforço de gostar ou ironia? Pois o mesmo Mário, meses antes, em maio, escrevera a Bandeira: "Um pouco menos petulante mas o mesmo irritante de sempre. Não tem sujeito que consiga me irritar mais. O Couto me desespera. Gosto dele por isso. Dá catalepada em toda gente, descobre defeitos na gente de cambulhada com defeitos que tira da própria cachola com uma fecundidade e uma leviandade que espanta e acabrunha. [...] É um pândego delicioso, a delícia da pimenta que arde, é ruim mas a gente continua comendo pimenta. Isso: o Ribeiro Couto me parece mais uma especiaria que um alimento, que você me diz desta observação?"
Se Mário desgostava-gostando assim de Couto, este, por sua vez, admirando o extraordinário talento do amigo, não apreciava nele certos traços da personalidade, e usaria de franqueza arrasadora ao lhe declarar, em carta daquele mesmo ano: "Já uma vez, no bar do Largo de S. Bento, à noite, eu confessei candidamente a V. que o achava com um todo perfeitamente hipócrita. Disse-o sem intuito de ofensa; disse-o como diria: V. é feio. Ou então: V. é bonito. Meu juízo não variou. Acho V. com uma adorável hipocrisia."
Difícil de entender a ausência de "intuito de ofensa" em tal julgamento! E apesar disso, Mário de Andrade pôde absorver a crítica, naturalmente sem perder a oportunidade de defesa enérgica. Em 1926, porém, os desencontros já eram tantos que lhe davam a convicção de existir entre os dois "uma diferença tal de feição psicológica" que os impedia de exercer a amizade na sua plenitude.
Ainda assim, continuaram se correspondendo. Até que, em 1928, àquela diferença de "feição psicológica" somou-se uma "incompatibilidade de feição criadora", termos usados por Mário de Andrade na resenha crítica que publicou no Diário Nacional sobre o livro de contos de Ribeiro Couto intitulado Baianinha e outras mulheres. Crítica intrigante, na qual começava afirmando ser o livro excelente, "de plena maturidade da prosa de Ribeiro Couto", mas segue negando-lhe qualquer valor de obra-de-arte. Afirma, no início, ser magnífico o conto intitulado "Maternidade" e, no entanto, no desenvolver do artigo, pondera que o conto "é um caso muito comovente e que podia abraçar todas as mulheres infecundas. Porém está escrito tão para fora da 'obra de arte' que se resume no caso de fulana de tal. É como se nos contassem isso em conversa. A gente sente um dózinho en passant por Fulana de tal". E encerra o artigo afirmando que "Ribeiro Couto é um contista de lar".
Foi fatal. Couto, indignado, negou-se a comentar o artigo e, a partir daí, reduziu as copiosas cartas a cartões esparsos e lacônicos. No fim daquele ano seguiu para Marselha, a fim de iniciar carreira diplomática. Dá-se então um hiato na correspondência dos dois, só retomado em 1935, quando Ribeiro Couto, humilde, tenta reaproximar-se. Em vão. Mais uma vez a incompatibilidade se impunha. Mário não o perdoaria pelo silêncio inexplicado. Com cortesia, limitava-se a atender-lhe os pedidos de envio de alguns livros. Cumpria-se o vaticínio de Ribeiro Couto, em carta de 1927: "Nós somos cavalheiros que estão dos lados opostos da gangorra. Ou antes, sentamos em camarotes diversos da montanha russa: por mais que a roda gire não nos encontraremos..."
Presença de Manuel Bandeira. Neste testemunho epistolar de fraquezas e de largas generosidades, destaca-se a presença constante de Manuel Bandeira. Amigo-irmão de Ribeiro Couto, a quem, segundo confessou, tributava sentimento fraterno comparável ao que sentia por sua irmã, Maria Cândida, o poeta de Pasárgada permaneceu entre os dois, movendo-se na admiração, no amor e em algumas raivas. Em seu Itinerário de Pasárgada, afirmou: "À influência do homem Ribeiro Couto, muito saudável, e do poeta Ribeiro Couto, com os seus amados simbolistas de segunda ordem - Samain, Jammes, etc. - veio juntar-se a de Mário de Andrade."
Ao leitor destas cartas surgirão perguntas que podem ficar sem respostas. Uma vez enunciadas, no entanto, podem fazer a leitura ainda mais instigante: por que, discordando tanto, teimaram Mário de Andrade e Ribeiro Couto nessa troca sem sucesso? Teriam sido amigos por causa de Manuel Bandeira? Mas... supondo que Bandeira não estivesse entre os dois, aproximando-os, teria Ribeiro Couto, "grande farejador de novidades", prescindido da amizade de Mário, no momento em que este encarnava a vigorosa substância do ideário modernista? E Mário - supondo ainda uma vez a ausência de Bandeira ? teria resistido às provocações literárias e afetivas de Ribeiro Couto, ao viço de suas insinuações?
Elvia Bezerra (*)
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(*) autora de A trinca do Curvelo: Manuel Bandeira, Ribeiro
Couto e Nise da Silveira. Rio de Janeiro, Topbooks, 1995. Organiza, em
2002, a Correspondência Mário de Andrade & Ribeiro Couto.
Versos do poema "Paisagem nº 3": "As rolas
da Normal/ esvoaçam entre os dedos da garoa..." (v. 14-15).
Fonte: http://www.casaruibarbosa.gov.br/amlb/ribeiro_couto/main_elvia2.html