JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados,
entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator.

Coluna de 10/11

Os eunucos enamorados do verbo (*)

Em meio século de convívio, com aquela intimidade só permitida entre gigolôs e "profissionais da sexualidade", aprendi que a palavra é uma dama nem sempre gentil, mas sempre caprichosa. Ela não se deita com qualquer um, mas escolhe a dedo a quem dá o prazer e a honra de possuí-la em intercursos fugazes, embora infinitos. Volúvel, ela só se entrega a qualquer parceiro se for por inteiro: fá-lo sem reservas, mas só a quem escolhe - mesmo um mendigo -, assim como se fecha em copas de forma definitiva a qualquer um que rejeite – ainda que este seja nobre, tirano, bonito, simpático ou santo.

De tais amantes não exige conhecimento técnico para seu manejo. O sertão do Nordeste está cheio de repentistas analfabetos capazes de dela fazerem gato e sapato sem conhecer as regras da gramática. Bráulio Tavares, que consegue ser ao mesmo tempo notório especialista em cultura popular nordestina e famigerado autor de ficção científica (com direito a prêmio da Caminho Editorial portuguesa por seu primoroso livro de contos A espinha dorsal da memória ), lamenta até hoje haver perdido todas as oportunidades que essa noiva antenada lhe deu de conhecer um gênio desses, o embolador Dedé da Mulatinha, cantando cocos de repente com seu ganzá na feira livre de Campina Grande, Paraíba. Inúmeras vezes Bráulio ignorou o privilegiado amásio do verbo, passando ao largo das multidões que se formavam em seu redor, e deixou de testemunhar sua prestidigitação (no completo sentido do termo), seja ao bolinar a pele da palavra, seja ao lhe auscultar a alma rica e vária, nos idos da adolescência dele na Rainha da Borborema. Hoje, como outros pretendentes, vive a fuçar, quase sempre em vão, arquivos de fotógrafos, cinegrafistas e jornalistas de rádio e televisão, garimpando instantes escassos de conúbios imperdíveis entre o sitiante ignorante do interior e o instrumento de trabalho de célebres filósofos, poetas e gênios da humanidade nas artes da prosa e nas ciências da História.

É vão o exercício dos tolos que tentem capturar seus segredos imaginando, assim, devassar seus mistérios. Não há critérios nem técnicas para suas escolhas. Canalhas – o caso de Louis-Ferdinand Céline – e ascetas – como San Juan de la Cruz – a conheceram tão bem como o erudito Octavio Paz e o soturno Edgar Allen Poe. Ao se relacionar com ela, Teresa d'Ávila conhecia êxtases, mas ela também provocava vômitos em Charles Bukowski e remorsos no padre Gerard Manley Hopkins, que queimava os versos que produzia, confundindo seus dons com os desejos sórdidos da carne - e os poucos que escaparam do fogo foram suficientes para torná-lo um dos mais venerados poetas da língua inglesa, de excelência reconhecida para o pleno exercício dessa arte de laboratoristas e iluminados. Honoré de Balzac a vendia para quitar dívidas prementes e Fiodor Dostoievski a usava para acertar as contas com o que a eterna alma humana guarda de mais recôndito. Walt Whitman a amou com estardalhaço e Alberto Moravia quase em sigilo.

Jorge Amado a manipulava com destreza e algum descaso e ela o tratou com desvelo idêntico ao dispensado ao minucioso Graciliano Ramos. James Joyce e João Guimarães Rosa dedicaram-se a conhecê-la em profundidade e com eles ela não foi mais pródiga do que o seria com Jorge Luís Borges, que a usava apenas para brincar de cabra cega e seduzir seus visitantes noturnos, incautos e atentos - os leitores. O mulato Machado de Assis a empunhava como alguém procurando uma agulha num palheiro escuro, carregando uma vela – ela – e o "pé-preto" Albert Camus fazia de conta que ela era um florete nesta esgrima do viver. Oliveira de Panelas a manobra de maneira aleatória, enquanto Karl Marx e Sigmund Freud a submeteram ao jugo de uma irmã sua, de quem nunca se soube se primogênita, caçula ou gêmea - a idéia.

Cada um dos vários autores e autoras deste livro (Com a palavra ) a procurou em algum lugar incerto e a encontrou em fortuitas e diversas circunstâncias. Todos eles e todas elas, inlcusive este introdutor que lhas escreve, saíram da experiência desse convívio como quem foi buscar lã e terminou tosquiado. Esse tal de verbo é um cordeiro, ao mesmo tempo profano e sagrado, que nunca terá piedade de nós, seus eunucos enamorados.

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(*) Prefácio do livro "Com a palavra", que contém textos inéditos de Hilda Hilst, Augusto de Campos, Moacyr Scliar, José Saramago, Mário Chamie, Carlos Figueiredo, Maria Adelaide Amaral, Luis Fernando Veríssimo, Lauro Cesar Muniz e Ivan Angelo. Faz parte da coleção E, co-edição Sesc São Paulo e Lazuli Editora Nas bancas e livrarias ou pelo site www.lazuli.com.br, a partir de dezembro. R$ 17,10.

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