JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados,
entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator.

Coluna de 17/11

Drummond, segundo Belchior, em som e traço

Dia destes, perante uma platéia seleta, escolhida a dedo pelo próprio artista, sua gravadora, Indie Records, e a rádio Alpha FM, que gravou o programa Couvert artístico, dedicado a este, o compositor e intérprete cearense Raimundo Fagner destacou, em entrevista à locutora Ana Carolina a extraordinária importância da poesia em sua própria obra e também na lavra de sua geração. Se o sertanejo de Orós tinha razão, passava a tê-la ainda mais por obra e graça de um parceiro dele da patota que desceu do Nordeste para ocupar a Sony Records e o mercado fonográfico brasileiro na segunda metade dos anos 70 para cá. Trata-se de outro cearense, o cidadão de Sobral Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, que, numa ousadia típica dos "violétricos" (apelido que pus na turma que nunca fez movimento nenhum, mas moveu como ninguém os pilares da MPB), acaba de pôr em risco sua condição de astro dos palcos e dos estúdios de gravação num trabalho multi-artístico de altíssimo requinte: uma coleção de 31 gravuras retratando o poeta maior mineiro Carlos Drummond de Andrade, cada uma delas contendo no verso um poema deste, com dois CDs contendo-os musicados e interpretados pelo próprio Belchior.

É pouco ou quer mais? Se quer mais, então lá vai: o autor das gravuras é o próprio Belchior, que entre outros talentos reúne os de artista plástico e calígrafo. Com idêntico esmero ao usado para selecionar os poemas que musicou e cantou, o artista captou em várias versões o mesmo tema: o rosto do poeta calvo, hirto, de óculos e com o permanente ríctus com que costumava manter os lábios numa curvatura descendente, não para expressar tristeza, mas, na certa, para manifestar sua irônica visão sobre esta "máquina do mundo".

Sarcasmo e ousadia – Da mesma forma como o desenhista capturou o esgar de sarcasmo do militante cavaleiro da discreção, o compositor selecionou na vasta obra de CDA, auge da aventura modernista deflagrada na semana de 22 e afogada no formalismo da geração 45 e das vanguardas de 50 e 60 para cá o que de mais categoricamente sapeca ele produziu. Essa atitude, ao mesmo tempo caturra e irreverente, do poeta perante o mundo, tem talvez seu ápice no célebre poema Política literária, que, é claro, Belchior incluiu em sua coletânea As várias caras de Drummond, lançada numa parceria entre o ídolo da Música Popular Brasileira e a editora da revista das celebridades. Lá está Política literária, poema de cinco versos dedicado adequadamente a outro poeta maior do Brasil no modernismo e no século 20, o pernambucano Manuel Bandeira. "O poeta municipal / discute com o poeta estadual / qual deles é capaz de bater o poeta federal. / Enquanto isso o poeta federal / tira ouro do nariz". Que gesto poderia ser mais antilírico do que o garimpo das catôtas, gíria pela qual é conhecida a sujeira do nariz? Só Drummond mesmo, não é? E quem mais, além de Belchior, proprietário de uma grande biblioteca de e sobre poesia, para ousar musicar esses versos, tratando um totem da literatura como mero parceiro?

Ousadia é uma ponte entre os dois inesperados parceiros. Drummond radicalizou no minimalismo em seu clássico Cota zero: "Stop. / A vida parou / ou foi o automóvel?" E Belchior ousou ainda mais ao musicar este poema, um desafio para qualquer musicista.

O ouvinte perceberá que as dificuldades de revestir poema conciso como o acima citado com música foram enfrentadas pelo compositor com o recurso da repetição dos versos. Mas não se confunda isso com facilitário. Ao contrário. Em nenhum momento, o compositor se escondeu atrás da beleza ou da legitimidade acadêmica dos versos de Drummond. Ele encontrou sempre soluções musicais de beleza comparável aos versos musicados, usando na melodia e harmonia com que os vestiu a ênfase de uma leitura crítica sofisticada. É o caso de outro poema curtíssimo e também irônico, o Lanterna mágica: "É preciso fazer um poema sobre a Bahia... / Mas eu nunca fui lá". A nítida oposição entre as duas frases aparentemente prosaicas é que dão força poética a seu conjunto. Ao ouvir a canção que Belchior compôs para ele, o ouvinte/leitor perceberá como ele capturou bem a mensagem do mestre, recorrendo ao contraste melódico como reforço da leitura do poema.

Ora com temas jazzísticos, ora com dolentes serestas brasileiras, lançando mão do baião ou apelando para o chorinho, o moço de Sobral deu nos dois CDs que acompanham a coleção de retratos do poeta e seus versos tratamento idêntico: o do respeito, mas um respeito irreverente. Nada da submissão inferior do fã, que certamente seria repudiada pelo homenageado, mas sim uma releitura musical e plástica, ao mesmo tempo fiel e crítica, respeitosa e gozativa. Difícil é saber o que o poeta de Itabira – tão avesso à exposição desnecessária - diria dessa releitura de seu amigo de Sobral – profissional da fama. Mas negar coerência do tratamento musical dado a seus versos e do traço usado para capturar sua fisionomia com o espírito folgazão de quem termina um poema com um verso como "Êta, vida besta, meu Deus!" (Cidadezinha qualquer), seria difícil até mesmo para um artista da palavra rigoroso, comprometido com o humano e inspirado como ele.

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