JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados,
entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida e O silêncio do delator.
Coluna de 01/12
Feira ruim e saco furado
A burocracia de fato desobedece, mas a ineficiência atrapalha mais
Há muita gente no mercado financeiro aliviada com o desmentido de que, à falta de nome melhor para substituir João Paulo Cunha (PT-SP) na presidência da Câmara, o abacaxi sobraria para ser descascado pelo ambicioso, polivalente e poderoso comissário José Dirceu. Talvez, se Sua Excelência pudesse acumular – como o tem feito com conselhos de consolação – com os atuais poderes da Casa Civil o cargo mais importante da Mesa da Câmara, ele não hesitasse em ocupar o lugar. Quem duvida? Só que ele teria de optar e há quem ache que sua ambição absolutista e as miragens revolucionárias que já o fizeram chorar copiosamente sobre o dólmã do comandante Fidel Castro poderiam ser mais daninhas à democracia na cuia emborcada no centro da Praça dos Três Poderes que no gabinete envidraçado que continuará ocupando no Palácio do Planalto.
Os jornais noticiaram um ranger de dentes do ex-chefe de Waldomiro Diniz e, como o patrono-em-chefe não criou desde então nenhum novo conselho para secar seu pote até aqui de mágoa, não era de todo improvável que ele quisesse se mudar com armas e bagagem de um Poder para outro, com a autoridade de quem manda no partido majoritário na Casa e continuará senhor de afetos e segredos do chefe encastelado no outro lado da praça. Outro indício de que esse roque poderia acontecer foi a disposição manifestada por Lula e registrada nos jornais de dispensar os espíritos santos de orelha, partindo já para uma carreira solo na chefia do governo federal. É de crer que, passada a metade do mandato, o chefe máximo tenha percebido, como sói ocorrer em episódios do gênero, que, tendo sido ele o eleito e o empossado, não há razões objetivas para dividir esse poder com ninguém mais, por mais confiável e competente que este seja. E esse fantasma, que atende pela marca poética de "solidão do poder", pode arrastar suas correntes no palácio, mas Dirceu já mandou dizer que está feliz onde está e de lá não sai nem para cruzar a praça.
Mas, de qualquer maneira, é inegável que, fiel ao manual do "já que estamos aqui, melhor ir ficando" (e este plural é apenas majestático), o presidente viu-se obrigado a dispensar outros companheiros de primeira hora para embalar seus sonhos continuístas nos colchões mais macios da coalizão ecumênica e pragmática, que vão do saco de gatos do PMDB às caixas registradoras do PP. Sem dispensar, naturalmente, as sacolas de recolher dízimos do PL, já testadas com êxito total.
A mudança foi percebida quando o reelegível em pessoa, no tom confessional e informal que domina como poucos antecessores, confidenciou à patuléia pagante que as coisas não funcionam (em particular suas promessas de campanha) por falta de ordens suas, mas, sim, pela vocação da burocracia para a desobediência. Na retórica auto-indulgente do poder impotente, o patrimonialismo do "manda quem pode, obedece quem tem juízo" virou "quem manda não pode tudo, porque quem devexecutar nem sempre tem de obedecer". No último serviço prestado ao chefe, de quem não é mais subordinado, ou na primeira tarefa de assessor informal, o jornalista Ricardo Kotscho, mais familiarizado com verbos e pronomes que Lula, explicitou de forma mais clara a queixa comum de todos quantos, ao chegarem ao ápice do poder, adotam sem pudor o hábito de transferir para o próximo abaixo a própria incapacidade de pôr fim ao que se propunha a acabar. "No governo não demora para você perceber os limites entre o que quer fazer, o que precisa fazer e o que é possível fazer. De fora a gente sempre pergunta: por que não resolvem isso, por que não dão aumento para o mínimo, por que não consertam as estradas, por que o País é tão injusto?", disse ele, em entrevista de adeus, publicada neste jornal (28/11, A7).
De fato, o exercício do poder dá boas lições de humildade a quem na oposição acha que tudo é fácil de resolver e é mais simples acusar o adversário de não se dispor a fazê-lo. Mas as coisas se tornam mais difíceis quando o encarregado de cumprir a tarefa ciclópica não a enfrenta, apelando para o comodismo do empenho zero. Do alto de seus milhões de votos, Lula preferiu dispensar os avisos das urnas e formar uma equipe de compadres que o mesmo povo que o elegeu reprovou usando exatamente o instrumento de sua aprovação e elevação ao poder: o voto. À honrosa exceção, é justo dizer, de alguns casos notórios de sucesso, como a equipe econômica (cuja permanência, ajuizadamente, o presidente acaba de garantir em público, contrariando notáveis como o citado Dirceu) e ministérios técnicos, caso do da Agricultura.
A parca colheita de feitos na primeira metade de sua gestão se deve mais a esse erro dele que à inércia congênita da burocracia, embora esta seja uma herança mais maldita que o legado de Fernando Henrique. Se quer reeleger-se, talvez Sua Excelência tenha de aplicar de fato o "choque de eficiência" que seus arautos anunciam aos cochichos nos corredores palacianos e fazer um "governo de resultados", ressuscitando a expressão desagradável aos ouvidos petistas, por lembrar os inimigos da Força Sindical. Para tanto vai ter de saber decifrar cada mapa eleitoral de outubro passado e fazer o oposto do que fez quando assumiu: em vez de mandar pôr 70 cadeiras à mesa ministerial para PMDB, PP, PL, PTB e a esquerda do PT se banquetearem à farta, ele deveria racionalizar seu primeiro escalão, reduzindo o número de pastas, e entregá-las a quem produza mais que meras desculpas amarelas.
Minha avó dizia que "desculpa de cego é feira ruim e saco furado". Pelo andar da carruagem, Lula vai ter de ficar com os olhos bem abertos, costurar o embornal com boa linha e garantir feiras melhores para sua clientela eleitoral ressabiada. Senão, pode bisar o naufrágio eleitoral de Dona Martaxa I, essa do "tem enchente, caio fora".