JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados,
entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator  (clique ao lado para ler a fortuna crítica).

Coluna de 15/12

Maquiavel e César na receita do PT

O Brasil não quer que o governo faça o impossível, mas, sim, que faça algo

O PT jamais confessará, mas, na verdade, não haveria mal nenhum se o fizesse: o partido, que sempre declarou a prioridade do social, malogrou feio nesse item e está voando em céu de brigadeiro na popularidade e no prestígio do presidente e do governo, por cumprir direitinho aquilo que condenava no anterior: o rigor fiscal. Além da Polícia Federal (PF), cujo trabalho de limpeza não é entendido sequer pelo líder governista na Câmara, aquele Luizinho que é professor e é primário (PT-SP), o que dá certo na atual gestão não é a Fome Zero nem os desvarios bolivarianos de poncho e conga, mas a velha política dos Pedros Malan e Parente, com imperceptíveis revisões de Palocci e Meirelles. Apesar do esforço em negar do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, inebriado pelos altos índices de popularidade, abriu seu encontro com os ministros nos últimos dias da semana passada jurando: “Não demos continuidade à política do governo anterior.”

O PT não confessará esse truísmo por um certo pudor e algum pendor pela originalidade a qualquer custo, o que não é tão grave. Mais preocupante é que essa dificuldade de aceitar a realidade tem levado a atual gestão federal a um gênero de “neomaquiavelismo” com pitadas de César Maia, com o qual os governantes tentam compensar e mascarar a própria inércia, tendendo de maneira perigosa para a fanfarronice fantasiosa. O pioneiro das ciências políticas na Florença dos Médicis lançou luz (em O Príncipe ) sobre a sagacidade de o gestor público fazer o mal de uma vez só e o bem aos poucos, como meio de ficar no poder. O prefeito pefelista do Rio cunhou a figura do “factóide”, a miragem vendida como fato. O “neomaquiavelismo” do PT no poder multiplica o factóide, numa versão contemporânea do milagre dos pães e dos peixes. O mesmo factóide do bem é anunciado a conta-gotas como novidade, às vezes mudando de logomarca, às vezes sem sequer necessidade disso.

O acólito-mor do presidente Lula, comissário José Dirceu, chefe da Casa Civil e gerentão do governo petista, acaba de dar um exemplo claro de como funciona esse mecanismo de persuasão pela persistência da fantasia que nem sempre se realiza. De repente, ele emergiu das sombras a que foi relegado o brilho de sua estrela por conta do escândalo de seu ex-pau-pra-toda-obra e ex-companheiro de quarto Waldomiro Diniz, logo após o indiciamento deste pela PF, para proclamar que anteontem seu chefe anunciaria o salário mínimo de R$ 290 para agora e R$ 300 para maio. Foi o que bastou para os jornais darem manchetes e as revistas revisitarem sua biografia de guerrilheiro a chefão da burocracia – uma delas chegando ao exagero de escolhê-lo “brasileiro do ano”, com direito a capa e lisonjas de fazerem corar um frade de pedra. Não há um brasileiro capaz de encontrar no cartel de Sua Excelência uma obrinha que seja – civil, institucional ou social. No entanto, no ano em que a medalha de bronze de Vanderlei Cordeiro de Lima brilhou como se fosse de ouro, outros atletas subiram ao pódio e um colega dele, seu desafeto Antonio Palocci, evitou a crise e produziu boas notícias na área vital da economia, Dirceu conseguiu o feito de ser lembrado, talvez por ter combatido à sombra, e felizmente sem sucesso, o que está dando mais certo no governo a que serve. Este exemplo de como ainda prevalece no Brasil a versão sobre o fato, descoberta da lavra das raposas pessedistas de Minas, não é uma boa mostra de percepção exata da vida real pelos brasileiros em geral. Mas uma precisa demonstração de como o bem de fantasia (às vezes de fancaria) anunciado em doses homeopáticas, mas nem sempre servido, funciona como ungüento para minorar as dores de uma vida de dificuldades e escassez.

A notícia de que o “homem do ano” foi o ditoso arauto ainda não foi confirmada – o que não impede, justiça lhe seja feita, que ela venha ser. E ainda hoje. Não faltarão, contudo, outros exemplos de boas miragens que não se concretizam. Quando o Poder Judiciário mandou o governo abrir os arquivos da repressão à luta armada – um episódio em que a tragédia se mistura à farsa e o factóide ,à lambança, como de hábito no “Brasil oficial” ( apud Ariano Suassuna) –, o presidente acorreu a mandar a Advocacia-Geral da União (AGU) acatar a decisão judicial. Judiciosa a sentença do chefe do Executivo! Mas, pelo visto, impossível de ser cumprida, pois a AGU recorreu. E... ganhou. Não importa aqui o mérito do recurso, mas o açodamento do chefe do governo em produzir a boa manchete sem o necessário respaldo jurídico para fazê-lo. No maquiavelismo à César Maia do “neopetismo” no poder importam menos os efeitos das ações governamentais que as boas notícias que sua inércia é incapaz de produzir a mancheias, como gostaria. Isso gera bons índices de popularidade nas pesquisas, mas em nada melhora a vida do brasileiro pobre, em defesa de quem o PT dizia pugnar.

O apreço pelo marketing, a despeito da realidade cotidiana comezinha (“danem-se os fatos”, parecem dizer diariamente esses loquazes novos donos do poder), já produziu um pseudoperseguido pela ditadura que, na verdade, era um serviçal dela (o ex-presidente da Embrafilme e atual chanceler, Celso Amorim). E a teoria esdrúxula de que a luz só se fez no dia 1.º de janeiro (e nem era 1.º de abril, dia da mentira) de 2003, quando o super-Lula, a bordo do mega-PT, varreu para longe as trevas da “herança maldita”, passando a fazer, segundo disse, “o necessário, parte do possível e algo do impossível”. A auto-indulgência não é um defeito exclusivo de Lula e de seu comissariado, mas a Nação agradeceria se, em vez de perseguir o impossível, seu governo fizesse mesmo algo em benefício da população sofrida e carente que o sufragou.

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