JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados,
entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida e O silêncio do delator (clique ao lado para ler a fortuna crítica).
Coluna de final de ano
Quer Marta preparar com esses ovos de hoje uma omelete para 2004?
"Se queres conhecer o vilão, dá-lhe o bastão", revela a sabedoria de nossos ancestrais d'além mar. Isso continua valendo, é claro. Mas talvez seja útil observar que os denodados companheiros do PT no poder descobriram uma paródia "republicana" (para usar aqui a mais nova gíria da política, posta a circular pelo chefe de polícia da República, o dr. Márcio Thomaz): "Se queres conhecer a natureza de alguém, retira-lhe o pirulito." Pois bastou o maior colégio eleitoral do País pedir de volta o cetro de açúcar (que lhe fora cedido há quatro anos) à prefeita Marta Suplicy para esta revelar um caráter vingativo capaz de surpreender o mais atento (e crítico) telespectador e ouvinte do horário eleitoral gratuito na última campanha eleitoral, ao longo deste segundo semestre.
Não se pode dizer que o eleitorado paulistano a tenha surpreendido para, passada a refrega eleitoral, dela merecer tantos e tão grandes sustos com as peças que ela andou pregando. Nem que ele tenha sido injusto demais com ela, como a própria mostrou acreditar. Afinal, o mesmo cidadão que a reprovaria nas urnas no primeiro e no segundo turnos já havia agradecido seu empenho, julgando de forma positiva, de acordo com as pesquisas, seus quatro anos de gestão. Mas em nenhum momento da campanha essas pesquisas deixaram de registrar o favoritismo de seu adversário tucano, José Serra. Não se pode, então, queixar a prefeita de não ter sido avisada da iminência do malogro.
Já o saco de maldades com que a mandatária presenteou os paulistanos às vésperas deste Natal exuma o lugar-comum dos locutores esportivos, a caixinha de surpresas, todas, aliás, negativas, desanimadoras e assustadoras. Os guinchos terceirizados deixaram de funcionar e os da CET não dão conta da retirada dos veículos acidentados; os músicos da orquestra não encontraram seus cachês no guichê municipal; os garis deixaram de recolher o lixo, porque não foram pagos para isso; a revolução da educação pelos CEUs foi suspensa até ordem de pagamento em contrário; os radares deixaram por um período de delatar os infratores do trânsito; e um alegado erro técnico impediu que famílias recebessem o benefício da renda mínima a que tinham direito. Com dona Marta em Paris e Milão e seu substituto à altura, o vice Hélio Bicudo, não se sabe bem onde, uma tempestade de verão transformou o túnel Jornalista Fernando Vieira de Melo em piscinão. E um técnico municipal inculpou o Rio Pinheiros pela catástrofe, repetindo o anátema do ex-prefeito Reynaldo de Barros, para quem a culpa pelas enchentes era do padre Manuel da Nóbrega, que, ignorante em engenharia hídrica, erigiu este burgo sobre várzeas.
A prefeita de São Paulo não é – justiça lhe seja feita – pioneira em falar uma coisa ao pedir votos e fazer outra após assumir. Esse é um esporte tão comum na política nacional que seus praticantes seriam suficientes para lotar o Pacaembu, não apenas o campo de jogo, mas o estádio todo: mede-se a distância entre a língua de um político brasileiro e suas mãos em anos-luz. Mas é preciso reconhecer-lhe o prêmio da originalidade no quesito "derrotaram-me, então, danem-se": com a mesma volúpia com que criou taxas para garantir o salário nosso de cada mês das boquinhas sem concursos públicos para os denodados companheiros da militância petista, que suaram a camisa para lhe garantir o terceiro cargo mais poderoso do País, Sua Excelência fez beicinho no Alla Scalla, de Milão, deu o beiço em fornecedores incautos de serviços abandonados e, enfim, estirou a língua para o cidadão, negando-lhe até o patrocínio da festa da virada do ano. Assim, parodiou o artigo inicial da Constituição que nunca foi escrita, mas vale mais que a oficial, lavrada por Artur Bernardes, "para os amigos, tudo; para os inimigos, o rigor da lei", praticando o "para os companheiros, a boquinha; para a plebe ingrata, beiço e língua de fora".
Revela o noticiário que a ex-sra. Suplicy aposta na decepção da cidade com seu sucessor, tal é o descalabro que Serra e seus tucanos dela vão herdar. Aqui também ela inovou, mesmo nesta Pátria que realiza à perfeição o célebre lema absolutista do monarca francês Luís XIV "après moi, le déluge" ("depois de mim, o dilúvio"), onde metade dos mandatos é gasta para tapar os buracos herdados e a outra metade, para enterrar o sucessor. Esta, contudo, é a primeira vez que a metáfora se concretiza, pois, além das contas a pagar, Serra terá dilúvios a enfrentar, após a posse. E essa estratégia está ainda sendo assumida sem pudor: candidata de si mesma ao governo do Estado, em dois anos, os trunfos de Marta para persuadir o partido a investir as fichas dele nela são os frutos calamitosos desta sua malfadada saída de cena. É o caso de perguntar se ela pretende preparar com os ovos metafóricos que lhe atiram hoje uma omelete marqueteira no pleito de 2006.
Brasileiros pouco habituados aos banquetes politiqueiros de nossa República sentirão embrulhados seus estômagos delicados por terem de digerir esses batráquios voadores. Mas não faltarão eventos interessantes a serem vistos nestes dois anos, se a prefeita de São Paulo conseguir, como espera, superar Aloizio Mercadante e João Paulo Cunha na corrida da indicação à disputa pelo Palácio dos Bandeirantes. Imagine, leitor, o desafio que será para o substituto do marqueteiro das rinhas, Duda Mendonça, ter de convencer o eleitorado da revolução viária representada pelo túnel conversível em piscinão ou pelo apelo turístico que vias como a Avenida Rebouças passaram a ter com o rush , antes comum apenas nas horas de pico e hoje prolongados madrugadas afora, depois da instalação da engenhosa solução da travessia da rua pelo pedestre para alcançar os ônibus no canteiro central.