JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados,
entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida e O silêncio do delator (clique ao lado para ler a fortuna crítica).
Coluna de 05/01
A fronteira do inferno
Incapaz de reprimir o crime, o Estado brasileiro se submete até aos códigos impostos pelos delinqüentes
O seqüestro da mãe de Robinho, campeão brasileiro de futebol, e a visita de dois ministros de Estado a uma favela do Complexo da Maré, no Rio, merecem uma reflexão especial neste início de ano.
Logo após a devolução de Marina da Silva e Souza, sã e hígida, à família, a Nação foi informada que, dentre as exigências da quadrilha que a seqüestrou num churrasco na casa de amigos na Praia Grande, constava a exclusão de seu filho da equipe titular do Santos Futebol Clube, da qual ele é o maior astro. A condição foi noticiada, mas mereceu pouco destaque, seja porque pareceu inócua - ninguém em sã consciência imagina que o treinador Wanderley Luxemburgo cometeria a insanidade de escalar um jogador com a mãe sob risco de morte e mantida em cativeiro por delinqüentes perigosos -, seja porque o detalhe tornou-se insignificante, uma vez que, dois dias depois, o jogador estaria atuando em São José do Rio Preto e se sagrando campeão brasileiro. Mas urge levá-la em conta e, mais que isso, refletir de forma madura e indignada sobre ela.
A insignificância da ordem absurda é apenas aparente. Pois, na verdade, dois pressupostos a tornaram possível: a ousadia dos seqüestradores e a covardia das autoridades encarregadas de exercer o monopólio da força legítima no Estado democrático de Direito. Poucos crimes dão a sensação de onipotência que dá o do seqüestro. Privar uma pessoa da liberdade, mantendo-a refém e submissa e com a vida suspenso por um fio, dependendo da decisão ou até do estado de humor de alguém é o ato que mais aproxima um ser humano deformado mentalmente da condição divina. Não é de estranhar que gente desse jaez também se ache devidamente autorizada a impedir o exercício profissional de sua vítima ou de seus parentes mais próximos. Interferir na escalação do melhor time do País, impedindo-o de contar com os recursos extraordinários de seu melhor profissional, é o sonho de consumo desse tipo de tiranete. E os seqüestradores da mãe de Robinho conseguiram esse feito.
Mas só o conseguiram porque contaram com a falta de iniciativa daqueles que comandam, legitimamente, em nome da sociedade, o aparato de segurança para garantir a liberdade e a integridade física da cidadania. A ousadia dos seqüestradores de Marina da Silva e Souza é proporcional à covardia das autoridades constituídas para reprimir esse tipo de crime hediondo.
Ao leitor mais sensível, que considere inadequado o uso da palavra "covardia", usada nos parágrafos anteriores, será útil lembrar que passaram-se três dias entre a libertação da seqüestrada em Praia Grande, na sexta-feira 17 de dezembro, e a visita dos ministros do Trabalho, Ricardo Berzoini, e da Cultura, Gilberto Gil, à Vila do João, no Complexo da Maré, no Rio, na segunda-feira 20 de dezembro. Esses dois membros da cúpula republicana (para usar o termo favorito do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos) só conseguiram lançar programas de qualificação profissional para jovens na favela carioca depois que a Ação Comunitária do Brasil (ACB), promotora da solenidade, recebeu dos traficantes que controlam a área visitada a garantia de que nada de extraordinário ocorreria durante a visita oficial.
Não é de hoje que candidatos em campanha, médicos chamados para socorrer pacientes, párocos convocados a ministrar algum sacramento e professores no exercício de seu magistério têm de se submeter às ordens e aos caprichos dos chefetes do Estado paralelo do crime, que manda e desmanda nos bairros miseráveis do Rio. Mas o reconhecimento implícito da existência desse poder paralelo pelos cidadãos investidos da autoridade para garantir o direito constitucional de ir e vir é uma afronta inaceitável. Até quando esse gênero de desafio será aceito pelos agentes da lei e da ordem como banal e inexorável? Onde fica a fronteira desse inferno?