JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados,
entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator  (clique ao lado para ler a fortuna crítica).

Coluna de 12/01

Contra o voto obrigatório

Um dos defeitos a que me habituei a criticar em nossa democracia é sua natureza exclusivamente eleitoral. Ao contrário da democracia americana, concebida pelos "pais fundadores" há mais de 200 anos e que funciona diuturnamente, como dizem os esnobes, a nossa é cíclica, periódica, ela ocorre a cada período eleitoral. Por isso mesmo, sou adversário figadal dessas tentativas repetidas em períodos de consulta popular de fazer com que estas coincidam ou deixem de coincidir, prorrogando mandatos para ajustar o calendário cívico. Instituições como as nossas, que dependem do pronunciamento direto do eleitor, precisam ser comandadas por mandatários reciclados periodicamente, já que, na rotina do cumprimento de seus mandatos, o cidadão praticamente não tem como cobrar deles uma atuação digna dessa pomposa denominação de "democracia representativa".

Felizmente, e é muito bom que se reconheça, o processo eleitoral brasileiro se tem aprimorado. E quando uso o termo é para reconhecer que, ao longo dos anos, os resultados das urnas se têm aproximado cada vez mais da vontade majoritária dos cidadãos brasileiros habilitados ao voto. Longe vai o tempo do voto de bico de pena da República Velha, sistema pelo qual as elites dirigentes paroquiais (leia-se os coronéis da Guarda Nacional) distorciam, dizendo corrigir, os resultados eleitorais. Passado o período discricionário do Estado Novo, vivemos sob a vigência da Constituição liberal de 1946, período que durou meros 18 anos, mas incorporou à prática política da consulta popular, em definitivo, o voto feminino (conquistado na Constituinte de 1924) e, sobretudo, a cédula única, com a qual começou a ter fim o terrível hábito coronelista do voto de cabresto, paródia da máxima antiga, que pode ser traduzida por "vota quem pode, obedece quem tem juízo".

Passado o interregno de dois decênios da ditadura militar, depois do golpe de 1964, a Nova República enfrentou com galhardia tentativas de fraude, como o célebre escândalo da Proconsult, em que o regime pretendeu alterar o resultado final da eleição estadual fluminense de 1982, mas que, feliz e finalmente, terminou dando com os burros n'água. O regime jurídico estabelecido pela Constituição de 1988 aposentou o velho hábito da fraude eleitoral, instituindo um sistema tecnológico up to date da votação eletrônica, que pôs fim à antiga prática de ganhar as eleições na contabilização dos mapas.

O primeiro turno das eleições municipais de 2004 é um marco histórico em nossa democracia eleitoral, por haver aposentado as críticas contumazes com que se pretendia lançar suspeitas sobre a possibilidade de manipulação dos programas de computador pela Justiça Eleitoral e também por ter sepultado, ao que parece definitivamente, o maligno "voto de cabresto" de nossos ancestrais. Ficou claro nos resultados dos 5.600 municípios brasileiros que o eleitor dispensou os conselhos de chefes políticos, párocos e patrões, decidindo por sua exclusiva vontade, desprezando inclusive os apoios dados pelos candidatos nos quais votou no primeiro turno aos remanescentes do segundo.

O povo votou em festa, como sempre, e sua vontade foi respeitada. Falta agora dar um passo a mais no rumo da modernização, que significa, repito, o respeito à vontade manifesta da cidadania. É claro que o sistema eleitoral pode ser aprimorado com a adoção de voto distrital, que aproximará ainda mais o representante do representado, mas este é um tema polêmico, difícil de ser enfrentado no sistema político brasileiro, no qual está enraizado o vício da proporcionalidade. Creio que a primeira investida no sentido de aprimorar nosso sistema eleitoral será liberar o eleitor da obrigação de votar, reconhecendo formalmente que este não é um DEVER, mas, sim, um DIREITO da cidadania. Ao obrigar o cidadão a votar, impondo-lhe multas caso não o faça, o sistema exerce sobre ele uma tutela, que não condiz seja com o espírito de liberdade que deve presidir o processo eleitoral, seja com o estágio de maturidade que o eleitor conquistou por méritos próprios.

Os adversários do fim da obrigatoriedade do voto alegam que a liberação poderá desmobilizar o eleitorado, dando mais poder aos partidos que tenham mais capacidade de organização. Se isso fosse verdade, não seria de todo mau, pois, afinal, os partidos têm mesmo a obrigação de mobilizar o eleitorado e se organizarem. Mas a quem sentiu o clima de festa e participação do eleitorado no primeiro turno das eleições municipais de 2004 foi dado perceber que o cidadão está consciente de seu papel e o cumpre com prazer e serenidade. Não o faz só porque é obrigado a isso, mas também e principalmente porque quer participar do processo, agora que se sentiu autônomo, independente e dono de uma vontade soberana, capaz de decidir sobre o próprio destino, escolhendo aqueles que o representam ou assumem cargos no Executivo. Está na hora de deixar de tutelá-lo, jogando no lixo da história esse atestado de minoridade cívica dado pelo voto obrigatório. Só julga que o eleitor não tem consciência desse papel quem se julga melhor que a média e, por isso, se sente autorizado a decidir por todos. E isso certamente democrático é que não é.

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