JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados,
entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator  (clique ao lado para ler a fortuna crítica).

Coluna de 19/01

Adriana Falcão acelera, vai fundo e faz rir

O que mais impressiona na leitura de qualquer texto da lavra de Adriana Falcão é a naturalidade gaiata, lúdica e pueril com que ela lida com as palavras. Na crônica esportiva, costuma-se medir a perícia de alguns craques (caso de Ronaldinho Gaúcho, eleito o melhor jogador do mundo pela Fifa) pela intimidade que eles possam ter no trato com seu instrumento de trabalho, a bola. Diz-se que quem conhece bem a bola a tuteia, enquanto os pernas-de-pau, coitados, maltratam o "esférico" e o tratam com reverência exagerada, de Sua Excelência para cima. Se há no ofício da escrita algum habitante da Pátria do poeta lisboeta Fernando Pessoa, esta nossa língua portuguesa, alguém a quem a metáfora futebolística se amolda à perfeição é ela. A metáfora esportiva vem a calhar, porque a Sra. Falcão elegeu como personagem importante de um de seus novos livros, A comédia dos anjos, um ser humano que, presume-se, passeia de chuteiras pelos gramados como se nada calçasse, assim como ela própria não recorre às luvas para armar parágrafos.

A ação desse texto hilariante, irreverente e saboroso transcorre em maio de 1958, às vésperas da primeira grande conquista da história desse esporte bretão que consagrou Fio Maravilha e Roberto Dinamite e que deu glória e fortuna a Romário e Rivaldo: a da Copa do Mundo da Suécia. Um mês antes de cair o queixo do mundo com os dribles de Garrincha e os gols de Pelé, uma zelosa mãe morre, mas se recusa a se recolher ao sono eterno para evitar que a filha caia na lábia de um jogador de futebol, prestes a ser convocado para a seleção. A autora não se faz de rogada em esclarecer que a protagonista intrometida é inspirada na própria mãe, já morta, embora ela mesma não possa ser identificada com a filha sonsa e indecisa, cujo coração balança entre o craque malandro e o honesto e malsucedido dono de bar falido, que amanha o empedernido coração materno.

Vertigem lapidar - A sra. Falcão tem experiência no metier. Em parceria com o marido, João, já escrever para teatro (o musical Cambaio, com canções de Edu Lobo e Chico Buarque) e cinema (O auto da compadecida) e, em seus vôos-solo, enriqueceu o complicado universo da literatura infantil (Mania de explicação), se aventurou pelos campos minados dos livros juvenis (Luna Clara e Apolo Onze), parodiou em nossa linguagem cotidiana O pequeno príncipe, de Saint-Exupéry (A máquina) e desempenha, com galhardia, a missão de fazer o povo rir na nova versão da bem-sucedida série cômica da televisão A grande família, criada por Oduvaldo Viana Filho e Armando Costa. Mas A comédia dos anjos vai muito além de um trabalho bem feito por um profissional que domina a carpintaria de seu ofício. Seu texto, curto, vertiginoso, original e lapidado como uma pedra faiscante é a prova de que rir pode ser a atividade mais inteligente do homem. E que diversão e boa literatura não se excluem, como prova este livro leve e solto.

Nisso é confirmado por outro, PS Beijei, escrito por ela em parceria com Mariana Veríssimo, filha (de Luís Fernando) e neta (de Érico) de grandes artesãos da prosa em português. Adriana Falcão é internauta de carteirinha, viciada até a medula no intercâmbio verbal via internet e, com a mesma facilidade com que inventa histórias impressas, salpica as frases na telinha do computador como se fossem varinhas de condão com estrelinhas na ponta, seduzindo o leitor com seu estilo gaiato, ágil e acelerado. Mariana e ela criaram Bia e Lili, duas adolescentes em cuja correspondência por E-mail compartilham as delícias ainda não testadas, mas já imaginadas, de um beijo e as expectativas de prazer e emoção das festas que podem levar a esse sonho de consumo.

O prazer da velocidade – Este outro livro, de leitura ainda mais rápida e digestiva que o anterior, é um excelente exemplo de como a linguagem dos escribas da rede internacional de computadores pode enriquecer o estilo literário sem agredir a língua nem provocar arrepios de indignação nos cultores dos cânones gramaticais. As autoras executam com habilidade a tarefa de contar a história a que se propõem sem trair os códigos e posturas das personagens, mas também sem confundir o leitor com a barafunda profusa de seus códigos secretos que impediriam a compreensão do enredo. Com a devida vênia pelo eventual exagero da metáfora empregada, eis um livro que é uma delícia de ser lido.

Enquanto A comédia dos anjos leva o leitor ao paroxismo do riso, a ponto de lhe furtar o fôlego, alterando-lhe o ritmo da respiração, portanto, e assim atendendo a uma das exigências da boa prosa, tal como enunciadas pelo craque colombiano Gabriel García Márquez, PS Beijei reproduz o apreço da juventude pela velocidade sem tropeçar em clichê nenhum. Em ambos os textos, a superficialidade aparente é apenas um jeito diferente, inteligente e interessante de ser profundo.

A comédia dos anjos, de Adriana Falcão, Editora Planeta, 136 pp.

PS Beijei, de Adriana Falcão e Mariana Veríssimo, Salamandra, 140 pp.

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