JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados,
entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator  (clique ao lado para ler a fortuna crítica).

Primeiro, a "tunga"; depois a "punga"

E não se ouve um pio dos tucanos contra a desfaçatez do governo na MP 232

Está nosso Brasil a viver um dos episódios mais grotescos - e ao mesmo tempo dos mais representativos - das relações do gênero "me engana que eu gosto" entre a autoridade pública e a patuléia pagante: a nefasta Medida Provisória Nº 232. Para dar ao distinto leitor uma idéia bem exata do cinismo com que se têm comportado os membros do governo e o descaso da elite civil dirigente, com destaque especial para o principal partido da oposição, não é necessário apelar para nenhum adjetivo. Basta relatar fria e sucintamente os fatos.

Na semana passada, a Receita Federal anunciou mais um de seus recordes de rotina, só que desta vez não mensal, mas anual: 10,6% de aumento real da arrecadação de 2004 comparada com a de 2003. A contribuição do incremento de mais de 20% pela Cofins, que todos sabiam que aumentaria a carga fiscal, mas o governo negava, e o fato de o crescimento (espetacular, diga-se) da economia ter sido de 5,2% não foram suficientes, contudo, para arrefecer o entusiasmo febril do secretário Rachid, da Defesa, que, numa caradura que faria corar até seu antecessor e mentor Everardo Maciel, atribuiu a engorda dos cofres da viúva ao enriquecimento da sociedade contribuinte. Fiel à devoção que o governo Lula tem pelo Dr. Pangloss (otimista incorrigível, personagem do Cândido , de Voltaire), nosso publicano de plantão trocou a aritmética plana pelo marketing torto.

Para socorrer o auxiliar acorreu pessoalmente o próprio chefe, o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, que fez fogo de encontro ao eventual (e aguardado) tiroteio dos críticos garantindo que o aumento da arrecadação em 2004 seria compensado por uma política de redução gradual da carga fiscal este ano. Seria cômico se não fosse trágico: o pacote tributário "do bem" que o governo tem a apresentar é a mal ajambrada Medida Provisória 232, cuja numeração dá idéia da fúria legiferante do Executivo federal e cujo teor denuncia a desfaçatez de seus membros. Pois a MP, encaminhada ao Congresso para aproveitar o fragor dos fogos de artifício das festas de fim de ano, comete a proeza de fingir que afaga com a mão para esbofetear com vigor com a outra.

A metáfora é apropriada. Anualmente, o Fisco ignora a desvalorização da moeda e se nega a devolver ao contribuinte o dinheiro que lhe toma indevidamente por causa dela. Não se trata de uma inovação petista, mas de uma velha prática, que Rachid herdou de Maciel, que, por sua vez, também não a inventou, mas aprendeu do antecessor: ao não corrigir a tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física, a autoridade monetária incorpora ex-isentos ao universo dos pagantes e passa a cobrar mais de quem antes pagava menos mercê do milagre da transposição das faixas de incidência. Como a maioria governista no Congresso é servil aos senhores do Planalto e a oposição tem mais a fazer que atuar na inglória defesa da cidadania, o governo faz uma monumental "tunga", corroendo em silêncio a renda do contribuinte e aumentando os recursos disponíveis à deglutição da insaciável máquina estatal. Assim, a benemerência de Palocci e seus parceiros, ao permitir que se devolva uma parcela do que foi indevidamente "tungado" do cidadão, não passa de cínico descaramento: o Estado comporta-se como um ladrão que arranca do pescoço de uma pessoa uma jóia de valor, atirando-lhe de volta ao colo a corrente arrebentada em que esta estava dependurada.

Mas nem mesmo dessa caridade de fancaria nossos gestores públicos são capazes, pois a MP que promove a "tunga" também legitima a "punga". Sob o argumento insidioso de que profissionais liberais podem estar fugindo de seus compromissos com o Leão pela brecha das empresas de prestação de serviços, a alíquota do IR dessas Pessoas Jurídicas, que foi de 12% em 2003 e 32% em 2004, salta para 40% em 2005. Ou seja, para devolver o que tomou indevidamente de parte da sociedade o governo enfia mais fundo a mão no bolso de outra parte. Com a vantagem política complementar de que a parcela premiada com a volta de parte do que lhe foi "tungado" é, em teoria, composta por segmentos sociais simpáticos a suas idéias, enquanto a "punga" alcança, preferencialmente, a renda da classe média mais identificada com o discreto charme tucano.

Ninguém precisa ser um oposicionista ferrenho, como o líder do PSDB no Senado, Artur Virgílio (AM), pois, para perceber o descalabro dessa providência absurda. Pois, pasme, caro leitor, o soit-disant maior partido de oposição do País ainda não acendeu um fósforo para queimar a palha política petista com essa conjugação perversa de meia-esmola paga com a carteira alheia batida.

Justiça seja feita a quem se deve fazê-lo, o comportamento tíbio do alto tucanato não é regra geral na oposição nem acovardou a sociedade. O PFL denunciou o golpe de "joão-sem-braço" do PT. Guilherme Afif, da Associação Comercial, os médicos e as lideranças do setor supermercadista chiaram alto contra o descaramento oficial, chamando a atenção da opinião pública numa mobilização de dar gosto na semana passada. Até Paulinho Pereira, da Força Sindical e do PDT, deu o ar de sua graça nesse movimento geral contra o mostrengo.

E o PSDB? Em resposta ao suspeito mutismo tucano, o presidente nacional licenciado do partido e prefeito de São Paulo, José Serra, garantiu publicamente que, assim que o recesso acabar, os tucanos vão piar. Ah, bom! Quer dizer, então, que nada - nem uma rara oportunidade de desgastar o presidente, favorito à própria reeleição - tira um lídimo oposicionista construtivo de seu repouso de guerreiro da paz? Seria o caso de, parodiando a sentença sobre luzias e saqüaremas no Império, dizer que o melhor amigo de um petista no poder é um tucano na oposição?

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