JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados,
entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator  (clique ao lado para ler a fortuna crítica).

Coluna de 03/02

Seminário de Jornalismo e literatura na Academia Brasileira de Letras (Rio de Janeiro)

23 de outubro de 2004

Mauro Salles, moderador - Queria convidar agora, o jornalista, meu colega, só não é colega demais porque eu sou pernambucano, e entre Pernambuco e Paraíba, há umas discussões ainda não resolvidas. Poeta, sempre agitando o movimento intelectual em São Paulo. Com a palavra, o nosso José Nêumanne.

Bem, eu resolvi falar aqui porque as pessoas que me encontram na rua e que me vêem na televisão estranham e me acham grande, pois achavam que eu sou pequeno, só porque não tenho pescoço. E como sou um poeta menor, um escritor bissexto e um jornalista obscuro, pois todo editorialista é obscuro por oficio, não posso também sair diminuído no porte físico. Então, resolvi mostrar-lhes minha altura real. Afinal, sou um sertanejo paraibano, com 1m80cm de altura e me orgulho disso: como diz Mauro Salles, morreram pelo menos uns 200 sertanejos para eu sobreviver e ainda ficar desse tamanho.

Confesso a vocês que não preparei nada do que eu devia lhes falar, porque não consegui definir direito. Recorri à memória para ver em que determinado momento que sacanagem eu fiz com Ivan Junqueira (fui chefe dele) para ele me pôr falando aqui entre Lêdo Ivo, ele, Evanildo Bechara e Antonio Olinto. Ou pensei que podia ter cometido alguma gafe numa das festas que freqüento amiúde na casa do Mauro Salles. Então, só quero lhes dizer o seguinte: o escasso brilho da minha participação nesse seminário não é fruto de irresponsabilidade minha. Nenhum jornalista ou escritor no Brasil recusaria um convite desses. é pura irresponsabilidade dos senhores Ivan Junqueira, Mauro Salles e outros.

Quero também dizer que, como todo jornalista, sou oportunista e vou me aproveitar bastante de deixas que ouvi aqui. Já que Ivan falou de deixas! E mais: vocês todos estão autorizados a discordar de mim, porque eu não sou dono da verdade, mas um provocador e vim aqui para provocar. Provocar o mestre Lêdo Ivo, que fez uma palestra brilhante e me retirou a possibilidade de recorrer à história do jornalismo e de contar piada com manchete. E Ivan Junqueira, que fez a associação perfeita entre jornalismo e literatura. Hemingway, se não me engano, dizia que todo escritor deveria passar pela redação do jornal, mas só fica no ponto depois de sair dela redação. Vai ver que é por isso que continuo na redação do jornal e Ivan não está mais.

Então, gostaria de fazer algumas pequenas provocações, que podem até virar grandes, dependendo da opinião e das idéias que vocês tenham dos assuntos que vou tratar. Vim aqui lhes fazer uma denúncia e um apelo. A denúncia que farei é que a política, o jornalismo e até a literatura estão assassinando a língua portuguesa. Nós tivemos um presidente que, ao longo de oito anos, achava que era muito bonito e muito importante falar outras línguas. E agora nós temos um presidente que não fala outras línguas e mesmo seu português é bastante precário, o que não impede que eu tenha lido no jornal O Globo uma coluna do meu amigo, o professor de português Pasquale Cipro Neto, elogiando muito o português falado por nosso presidente. Só tenho mesmo de reconhecer é que, se realmente o português do Lula é muito precário, não é tão mais precário assim que o português praticado na imprensa brasileira. É cada vez mais depauperado o português que se imprime nos jornais e nas revistas do Brasil. Aquele exemplo que Antonio Olinto deu é extremamente caridoso e até o considero corporativista. Ele estava era defendendo os jornalistas, dando um exemplo com um erro tão pequeno, como constato diariamente lendo jornais. Sim, ao contrário de Ivan, não sou casado com uma jornalista, mas com uma médica. Só que, como ele, recebo em casa quatro jornais e leio mais dez, porque editorialista escreve muito pouco, mas lê muito. E vocês não podem imaginar como me deparo com pastéis e com erros de português dolorosos. O meu único consolo é que a literatura brasileira também não é assim muito mais generosa no trato da nossa língua materna que o jornalismo não.

Há pouco conversava com Ivan sobre a perspectiva de alguns grandes prêmios literários serem dados ainda este ano para um escritor que não escreve em português, mas numa espécie de latim vulgar, alguma coisa parecida com português. Até que dá para entender razoavelmente 20% do que ele escreve, mas certamente em vernáculo não é. Aliás, é uma prática comum na literatura brasileira hoje: é muito raro encontrar um escritor contemporâneo que escreva em português escorreito. Então, a minha provocação é a seguinte: a língua portuguesa, seja na imprensa, seja na literatura, nos meios de comunicação em geral, está em franca dissolução. Recentemente, eu vi numa novela de grande audiência no horário nobre da tevê, uma personagem , professora de ofício, confessar que tinha "baixa estima". Ou seja, a pessoa que escreveu confundiu "auto", do prefixo grego "de si", com alto, uma coisa grande. Como eu, por exemplo, que sou alto, ou não sou? Então, isso é uma coisa corriqueira: nos jornais, na televisão, o português está sendo vilipendiado. Um dia desses, eu falei sobre esse assunto para uma platéia, assim como vocês, em São Paulo, e ao meu lado estava o colega Rodolfo Konder, que citou um número, que confesso que não anotei, um número "x" de línguas que desaparecem diariamente no mundo. No Brasil também desaparecem muitas línguas indígenas, está certo que são línguas que não se escrevem, não se imprimem. Este, evidentemente, não é o caso do português, que é uma língua escrita e impressa, mas eu não tenho muita certeza se o português será uma língua com uma sobrevida muito grande por causa de algumas circunstâncias específicas, uma das quais é um problema grave, que é o desprezo que nós temos pela própria língua materna. Ele pode ser expresso pelo fato de um presidente preferir falar sempre inglês ou francês, ou pela evidência de que um professor de português considera que mudar o gênero de advérbio seja uma coisa correta, desde que quem o faça seja o presidente da República. É o exemplo de como o poder político pode manipular até a gramática.

Então, gostaria de colocar para vocês, meus queridos mestres acadêmicos, a missão de tentar salvar a Língua Portuguesa. Peço vênia para citar um exemplo pessoal: sou membro do Instituto Cultural Velásquez, que é um grupo de intelectuais e empresários de São Paulo, convocados pelo governo da Espanha para estreitar a amizade e o intercâmbio cultural entre nós, brasileiros e os espanhóis. Recentemente, esse grupo foi recebido pelo Rei Juan Carlos, da Espanha, e tive a oportunidade de cumprimentá-lo pelo brilhante trabalho geopolítico que seu país vem fazendo em relação ao castelhano.

Há alguns anos, viajei pelo interior dos Estados Unidos e fiquei espantadíssimo com a freqüência com que o castelhano invade a maior potência do mundo. E isso num território onde se fala o verdadeiro esperanto contemporâneo, que é o inglês. Hoje, no Oeste americano os juizes são obrigados a recolher testemunhos em castelhano - isso está previsto na lei. E mesmo em estados do norte e do nordeste dos Estados Unidos o castelhano se faz presente. Constatei isso pessoalmente no interior de Illinois, onde andei de ônibus e as passagens de ônibus são bilíngües - em inglês e em castelhano. Enquanto isso, nós desprezamos nossa língua. Aliás, gostaria de pedir desculpas por ter sido muito duro com Lula e com Fernando Henrique, esquecendo-me do nobre par de vocês José Sarney, cultor do "portunhol", e de Fernando Collor, autor do célebre "duela quem duela". E há quem diga que ele costumava pedir "cueca-cuela".

Então, cumprimentei o Rei da Espanha, porque considero que, realmente, hoje, no universo, num planeta globalizado, a língua é um elemento de domínio econômico e de dominação política da maior importância. É claro que os americanos mandam no mundo porque têm mais dinheiro, porque têm mais poderio militar, mas também assistimos a um verdadeiro massacre da cultura americana e da língua inglesa sobre todos os outros países do mundo. Em qualquer país que alguém chegar e falar inglês, qualquer um, basicamente, entende. Menos talvez em Nova Iorque, mas isso aí não pesa tanto. A verdade é que isso não acontece com o português e nós temos a triste sensação de que o português é uma língua que está desaparecendo. E está desaparecendo até nos textos literários, nos quais está sendo substituída por alguma coisa meio diluída, que eu não sei bem definir o que é. Talvez estejamos voltando às origens do galaico-português ou do latim vulgar. Está desaparecendo, principalmente, nos meios de comunicação e eu espero que a Academia, como tem entre as suas funções a guarda e a necessidade de manutenção e sobrevivência da língua, encare essa missão como uma missão difícil, uma missão de guerra, uma missão da maior importância.

Eu, pessoalmente, me coloco, ideologicamente, nessa defesa assumindo para vocês posições muito claras. Eu, por exemplo, acho que é quinta coluna quem espalha por aí que nós falamos uma língua brasileira. Eu aprendi no sertão da Paraíba uma língua chamada portuguesa, Esta língua, eu falo em Portugal e lá sou entendido. E meu neto, que também é neto de portugueses, está ouvindo essa língua da minha parte com sotaque brasileiro e da parte da mãe dele e dos avós maternos dele com sotaque português, mas é a mesma língua. Então peço desculpas a quem defende a terminologia Língua Brasileira, mas acho que, de fato, essa divisão, essa tentativa de criar uma língua própria, como se fosse uma coisa que existisse, é mais uma forma de enfraquecimento, de fragilização da nossa língua portuguesa.

Calculo que aqui nesta platéia, haja muitos estudantes universitários de Letras e de Português e alguns deles discordarão radicalmente de mim. Mas eu quero ainda defender, e com muita veemência, apesar de respeitar todas as opiniões em contrário, a língua canônica: sim, sou a favor do cânones gramaticais. Acho que uma certa mentalidade, que foi disseminada, caiu nas graças da universidade brasileira - essa de dizer que não há erro de português, que a língua correta é a língua falada pelo povo, seja qual for a língua que o povo fale - e é tida como progressista, socialista, de esquerda, antielitista, na minha opinião, perdoem-me as pessoas que discordem de mim, é, na verdade, no fundo fascista e elitista. E vou aqui tentar explicar com minha argumentação de editorialista para vocês.

Acredito que temos um enorme patrimônio impresso, guardado em bibliotecas, de uma beleza e de uma grandeza imensuráveis. O idioma português não é o mais prolífico do mundo nem foi nele que se produziu a melhor literatura, mas é uma língua que tem Camões, que tem Machado de Assis, que tem Eça de Queiroz. É uma língua que tem um patrimônio cultural e estético invejável. Então, acho que, quando se prega na universidade, como se faz no Brasil, o relaxamento em relação aos cânones gramaticais, de uma certa forma se está pregando a inacessibilidade do pobre, que não se pode instruir, a esse enorme patrimônio. Então, em nome de um certo liberalismo, de deixar esse pobre falar como ele quiser, dizer "menas" ou coisas que o valham, esta é, no fundo, uma atitude preconceituosa. Pois, em nome desse populismo, se faz, na verdade, um impedimento elitista mercê do qual a pessoa que não tem acesso à universidade também não venha a ter acesso ao patrimônio literário e lingüístico.

Não sou radical a ponto de achar que aqueles narizes de cera, a que nosso querido poeta Lêdo Ivo, meu ídolo desde criança, se referiu, sejam usados em nossa linguagem coloquial. Eu falo um português coloquial, vocês falam um português coloquial. Uma coisa diferente é quando escrevemos. Só que eu acho que a língua é um instrumento de comunicação. E, sendo a língua um instrumento de comunicação, é preciso que haja um acordo tácito entre as pessoas que se comunicam a respeito, no mínimo, de significados. O que nós vemos hoje é que cada pessoa usa a palavra com o significado que quer, e o interlocutor que se vire para entender. E há também, uma redução absurda do universo vocabular, falado e escrito. Quer dizer, até é possível reconhecer que principalmente entre os jovens haja uma informalidade maior e essa informalidade produza um certo encurtamento do universo vocabular. Mas resumir a língua inteira a cinco ou seis gírias é um empobrecimento que levará à diminuição e em última instância até ao desaparecimento dessa língua. é claro que eu não sou estúpido a ponto de dizer que a língua portuguesa vai acabar, que meu neto não vai mais falar português - ou o filho do meu neto -, mas eu percebo um abastardamento da língua e esse abastardamento está sendo endeusado, do ponto de vista político. Defendi essas idéias polêmicas numa reunião na Biblioteca Mario de Andrade e estava ao meu lado um ilustríssimo professor de português da USP, que argumentou, quando me referi ao uso da flexão do advérbio pelo presidente Lula, que tem uma predileção especial pelo inexistente advérbio "menas", que o Conde Almeida Garrett também flexionava os advérbios. Então, a única defesa que me restou, como polemista, foi dizer que isso é provável, eu não me lembro de ter lido "menas" no Conde Almeida Garrett, mas eu não ia desmentir o professor de português. Mas eu tinha certeza de uma coisa, conhecendo Lula como conheço, e bem, desde 1975: não foi lendo Almeida Garrett que ele aprendeu a falar "menas".

Então, essas são as provocações que eu queria pôr à discussão, porque eu não teria muito mais coisas a fazer depois da aula de história na minha profissão e que eu, comovido, ouvi ali sentado ao lado do Lêdo Ivo, na qual ele traçou em 25 minutos a história da imprensa de uma forma sintética e cheia de graça. Sou – sempre fui - admirador do Lêdo como poeta, mas jamais poderia imaginar que ele fosse um historiador da imprensa tão preciso. E nessa briga que ele arrumou aí com Ivan Junqueira, que, aliás, Ivan Junqueira arrumou com ele, a respeito do desaparecimento dos jornais, eu, como homem de Guttenberg, tenho a triste notícia a dar a meu querido amigo Ivan Junqueir: os jornais estão desaparecendo, sim. Há pesquisas cientificas demonstrando claramente o esvaziamento da imprensa e basta alguém ler os jornais brasileiros para logo perceber que eles estão piorando, lamentavelmente. E o pior é que também estão perdendo o mínimo de apelo que eles tinham, principalmente entre os mais jovens. Há estudos científicos - os americanos são muito bons nisso - que mostram o envelhecimento progressivo do leitor de jornal. A média de idade do leitor de jornal está aumentando muito, provando que Ivan e eu vamos ler jornal até a morte, mas meu neto, Pedro, dificilmente lerá. é muito provável que os jornais desapareçam e eu, como jornalista não tão antigo como Lêdo, mas da geração de Ivan, lamento muito. Ivan, aliás, mentiu, ao se definir como um jornalista bissexto, que ia e voltava: ele é um jornalista brilhante e essa página que ele citou é um trabalho no qual eu só entrei com incentivo, pois foi um trabalho dele e foi um trabalho antológico. Aconselho a todos vocês a a procurarem nos arquivos, pois se trata de uma página de grande qualidade tanto literária quanto gráfica.

Pois bem, então, nessa briga do desaparecimento do jornal, infelizmente Antonio Olinto fez a observação correta: os jornais estão desaparecendo mesmo, o fato de nós ainda lermos jornais não significa muita coisa, pois os jovens estão deixando de ler e eu não tenho muito a dizer aos jovens para que eles leiam os jornais. Bem, o fato é que eu tinha previsto falar alguma coisa sobre jornalismo cultural, mas não me resta mais tempo algum e eu vou só lhes dizer que o jornalismo cultural no Brasil se vendeu ao mercado. Então, a imprensa na qual milito - e me orgulho de ser jornalista, não sei fazer outra coisa na vida - está participando de uma forma deletéria de depauperar a língua portuguesa e até a ajudando, de forma indireta, ao deixar de promover e de levar ao leitor a informação sobre a verdadeira literatura. Hoje, apesar de alguma exceções, aliás exceções basicamente cariocas, O Prosa e Verso, de O Globo e o Idéias, do Jornal do Brasil, não há espaço para a indústria cultural editorial na imprensa brasileira. Em São Paulo, o Estado de S. Paulo tinha um suplemento cultural famoso, histórico, que desapareceu, hoje está fundido no Caderno 2, aos domingos. E o Jornal da Tarde, em cuja redação trabalho, extinguiu um suplemento que tinha grande importância na veiculação de idéias críticas, que era o Caderno Leitura, que circulava aos sábados. Hoje, nós não temos mais críticos na imprensa, o último dos críticos é Wilson Martins, que já é um homem idoso, de grande talento, de grande importância, cujo trabalho é magnífico, mas um homem idoso. Quando se extinguir Wilson Martins, infelizmente não teremos mais a prática contínua e necessária daquilo a que Ivan Junqueira se referiu, que é a crítica literária no Brasil. Tudo isso faz parte de um processo de metástase lenta e gradual dessa doença de que são acometidos os meios de comunicação e que está matando a língua portuguesa de inanição.

Então, gostaria de colocar essas questões para vocês e de pedir que todos aqui pensassem um pouco em que os cânones gramaticais continuam sendo necessários para que haja um acordo tácito mínimo de pelo menos se entender o que o outro fala. Muito obrigado!

Moderador:

Francisco Marco Júnior pergunta ao Nêumanne o seguinte: "No tocante ao fato da nossa língua estar na UTI, você concorda que o nosso povo é aculturado e adora estrangeirismo?"

Jornalista José Nêumanne

O estrangeirismo é um vício resultante da civilização. Se for um mal, será um mal necessário à própria civilização, principalmente para quem vive nesta globalização, na qual é natural falar em hambúrguer, hot-dog e coisas do gênero. Não recebo com grande entusiasmo essa lei do Aldo Rebelo de proibir estrangeirismos, pois esse método já não deu certo, por exemplo, na França, que tem uma língua muito mais divulgada e muito mais disseminada do que a nossa. Eu não vejo problemas na absorção do estrangeirismo, o meu problema maior é em relação à confusão que há entre a transgressão e a incompetência. Peço-lhes aqui licença para complementar a resposta que Ivan deu há pouco à questão da transgressão da regra, porque achei que a pergunta foi até mal dirigida ao Ivan – perdoe-me a pessoa que perguntou , já que, na verdade, ela tinha de ser dirigida a mim, porque Ivan não se referiu à questão canônica e quem falou nela fui eu. De qualquer maneira, eu retomo, aqui, a partir da questão do estrangeirismos, o tema do cânone da norma culta, não apenas para endossar o que o Ivan falou – "sem norma culta, não há transgressão" - como também para acrescentar que a transgressão só é possível com uma enorme competência do domínio técnico da norma. Só uma pessoa que tenha um domínio técnico extraordinário da norma é autorizada a transgredir. Não há uma rigidez da língua, é claro que a língua é dinâmica e ela se move. O que não pode é haver ultrapassagem do limite da compreensão. O exemplo que Ivan citou é perfeito: Mário de Andrade tentou criar outra língua, uma língua que para ele seria mais adequada para o Brasil. Essa língua se perdeu e a literatura de Mário escrita nessa língua também. Aliás, Glauber Rocha também fez uma tentativa nesse sentido, malsucedida. Guimarães Rosa, não. Guimarães Rosa, profundo conhecedor da norma culta, profundo conhecedor da lingüística, de outros idiomas, fez um amálgama de uma grande transgressão, de uma grande beleza estética e que permanece viva até hoje. Então, esse é o limite. Não há limites de rigidez: não estou querendo, aqui, manter a língua portuguesa engessada, não é isso. A língua é dinâmica e ela evolui e quem faz a língua evoluir é o povo. Só que tem de haver um mínimo de compreensão entre duas pessoas que a falam e mais ainda entre uma pessoa que escreve e a outra pessoa que lê. Então, existe a necessidade de se fixar, através da norma culta, códigos que permitam a comunicação entre duas pessoas. Em relação ao estrangeirismo, acho que é um problema muito mais residual, fruto do nosso tempo e tem a ver muito mais com o coloquialismo, com a língua falada do que propriamente com a língua escrita. Muito obrigado pela atenção

Resposta a perguntas encaminhadas por escrito:

Perguntas:

1 - Qual a sua opinião sobre a presença nas redações de pessoas formadas em outras áreas, como história, economia e relações internacionais? O desrespeito aos cânones gramaticais nos textos jornalísticos não se deve, em parte, ao desaparecimento do copydesk?

A presença de pessoas com outra formação e outra experiência profissional que não a do jornalismo nas redações só pode enriquecer o exercício da profissão, desde que essas pessoas sejam bem escolhidas e exerçam de forma competente a missão que lhes cabe exercer. Não vejo por que transformar as redações em guetos de jornalistas e apenas jornalistas profissionais – o que poderia limitar ainda mais o já limitado universo cultural de nossas publicações periódicas.

É provável que a extinção do copydesk, uma exigência da economia e da nova tecnologia, tenha ajudado a empobrecer a qualidade média dos textos de jornais. Mas a principal causa desse processo é a má qualidade do ensino de português em nossas escolas, principalmente as faculdades de comunicação, nas quais obrigatoriamente são formados os jornalistas para o exercício da profissão.

2 - Como o jornalismo pode ser fiel à sua função social e despertar a consciência crítica da população?

A função social do jornalista é contar tudo o que sabe e manter a sociedade informada. E lutar para que chegue a ela a mais variada e plural gama de opiniões a respeito dos assuntos de seu interesse.

3 – As elites do país têm interesse em manter as altas taxas de analfabetismo presentes em nossa sociedade? Em que isso contribui para a perda da verdadeira língua portuguesa?

É provável que sim. O esquema de dominação do coronelismo incluía a manutenção das massas na ignorância. No neocoronelismo petista, são mantidos o assistencialismo da esmola como um bom valor e até uma certa valorização positiva da ignorância como se o saber fosse negativo e excludente. É claro que isso contribui para a depauperação galopante da língua – não apenas a canônica, mas até a coloquial.

E mais uma brincadeira que fiz para a revista Sras. & Srs. sobre nossas relações literárias com o império cultural francês:

Paulo Coelho, um brasileiro na corte de Flaubert

José Nêumanne

O embaixador Sérgio Corrêa da Costa, que foi, entre muitas outras coisas, até espião do Brasil na Argentina durante a 2ª Guerra Mundial (o que lhe rendeu um best-seller, ora na praça) e hoje é membro da Academia Brasileira de Letras, se deu ao trabalho de aproveitar o tempo livre de sua aposentadoria, na Europa, para relacionar as expressões idiomáticas publicadas em tipo normal em idioma alienígeno. Talvez seja útil ir logo esclarecendo ao leigo: convenciona-se que palavras ou expressões em línguas estrangeiras sejam registradas em tipos diferentes do texto comum, normalmente em itálico (vide como foi grafado best-seller acima, pois ninguém escreve "melhor vendedor", optando pelo original inglês em itálico), ocasionalmente em negrito. Há, contudo, termos que se incorporam a outras línguas de uma tal maneira que passam a ser tratados como se pertencesse ao idioma que o adotou, e não a sua língua original: não se escreve sanduíche hamburguês, mas hambúrguer, nem ludopédio, mas futebol. Estas são palavras originárias do inglês, mas ganharam uso tão corriqueiro em português (e em muitas outras línguas) que nem precisam ser destacadas das outras por uma família diferente de tipos de impressão.

A tendência natural – a minha a sua, caro leitor, e a de Edwaldo Pacote e Alex Solnik, que editam esta revista – será imaginar que o predomínio da língua inglesa, iniciada pela colonização britânica e continuada pelo poderio globalizante americano, lhe assegura o primeiro lugar no pódio das línguas das quais outros idiomas tomam emprestados termos corriqueiros. Primeiro, Hollywood e, depois, a Apple e a Microsoft, monopolistas dos sistemas de software (veja como o exemplo se repete aqui) de todos os computadores do mundo, invadem a praia lingüística do planeta globalizado, assim como a praga de gafanhoto destruía as lavouras egípcias nos tempos do hebreu José. Mas, por incrível que pareça, como descobriu o embaixador Sérgio Corrêa da Costa, tal obviedade não se confirma na prática. Ao pesquisar – basicamente em memórias de computadores, mas também em bibliotecas como a do Vaticano – expressões idiomáticas internacionalizadas, o ex-espião do bem descobriu que o inglês de Louis B. Mayer, Stephen Spielberger, Bill Gates e Steve Jobs ainda não superou a influência de dois impérios culturais anteriores: por incrível que pareça, o romano, via latim, em teoria uma língua morta (peró no mucho) e, por mais incrível ainda que possa parecer, o império colonialista cultural francês. É desse império que vem o maior de todos os estrangeirismos no português escrito e falado no Brasil: o Papai Noel (na verdade, como não se cansa de me ensinar meu neto meio português, Pedro, Papai Natal).

E talvez nem seja tão difícil de explicar por quê. Afinal, tomemos o exemplo fácil da palavra software, usada no parágrafo anterior: nem eu nem Pacote nem Solnik nem Bernard-Henri Lévy conseguiríamos encontrar uma palavra - ou mesmo uma expressão -, em português ou francês, que fosse capaz de traduzir de forma eficiente o termo inglês, que resume o significado de todos os sistemas que dão eficiência e rapidez à burrice computadorizada (vulgo hardware, também intraduzível). Mas nenhum de nós se sente confortável para escrever a palavra estrangeira sem destacá-la em itálico pelo simples motivo de que o leitor – cuja capacidade de entender perfeita, precisa e completamente o que se escreve é o objetivo de quem lhe dirige a palavra escrita – ainda não está familiarizado nem com ela nem sequer com a forma como ela foi composta. A tal palavra ainda não foi usada com freqüência que justifique uma adaptação. Este é o caso, por exemplo, do fonema futebol, cuja pronúncia é igual à do original football, mas cujo registro escrito se adapta à pronúncia lusófona tradicional. E o de garçom, que vem de garçon.

Os exemplos aqui usados são completos de vez que o uso dos termos estrangeiros foi modificado no idioma para o qual eles se mudaram. O futebol vem de football, esporte importado do Reino Unido pelo paulista Charles Miller, não dos EUA, onde é outro esporte: lá nossa paixão popular chama-se soccer, como sabemos). E nem todo rapaz (garçon, em francês) serve mesas na América lusófona. Com mais de 20 séculos para se sedimentar, o latim se entranhou em outras línguas de tal forma que está presente até na novilíngua de Gates e Jobs: o neologismo "deletar" vem do verbo inglês delete, cuja origem está no latim: "Delenda Cartago" (Cartago deve ser destruída), já bradava o velho Catão.

Vale o escrito - O domínio cultural francês, da mesma forma, está sedimentado, não apenas na dita "última flor do Lácio, inculta e bela", esta nossa, mas até mesmo em línguas faladas por povos mais ricos e de maior poderio militar. No império russo, era chique (outro exemplo de termo francês aportuguesado, usado, apesar de o sinônimo elegante também ser apropriado e facilmente compreensível) falar francês ou, no mínimo, misturar palavras e expressões francesas no russo falado e escrito. O protagonista do monumental romance Guerra e paz, de Lev (também conhecido internacionalmente como Leon) Tolstoi, chamava-se Pierre, não Piotr, o equivalente russo a nosso Pedro. Nem os revolucionários bolcheviques escaparam a essa moda. Pois um xará do grande romancista, o brilhante orador, polemista e líder revolucionário Trotsky, chamava-se Lev, mas também era conhecido como Leon.

Não sou lingüista, nem sequer tenho cultura para defender hipóteses, como passarei a fazê-lo neste texto, mas sou suficientemente atrevido para atribuir a fácil sedimentação da terminologia francesa em suas "colônias" culturais ao fato de essa dominação ter sido exercida no campo específico da palavra escrita. Embora parte do domínio cultural inglês possa ser atribuída a autores de best-sellersc, como Harold Robbins, Mario Puzo e outros, na verdade, essa invasão da praia alheia pela língua de Shakespeare se dá muito mais pela palavra falada – como, aliás, já registrava o sambista Noel Rosa em sua sátira de sucesso -, seja pela via do cinema sonoro, seja pela trilha da canção popular. O cinema tornou famosas frases que nem sequer foram pronunciadas (caso da repetidíssima "play it again, Sam, no clássico romântico Casablanca) e a canção, de Cole Porter a Elvis Presley, com uma "mãozinha" além-mar dos Beatles e dos Rolling Stones, se entranharam nos hábitos dos mercados de consumo mundial justamente na hora em que compradores e vendedores começaram a aprender o esperanto contemporâneo para poderem trabalhar e prosperar.

Mas o francês, não! O francês ganhou a primazia pesquisada pelo acadêmico Sérgio Corrêa da Costa, no papel. E essa primazia, que vem de Honoré de Balzac e Gustave Flaubert, os papas do romance no século 19; de Charles Baudelaire e Arthur Rimbaud, que, à mesma época, deram à sua língua neolatina status (olha o latim aí, gente) de extrato superior; ou ainda de Victor Hugo, que conseguiu o milagre de ser um titã na prosa e na poesia e ser respeitado nas salas de aula e nas feiras-livres, manteve sua primazia, mesmo ao longo do "colonialismo" anglófono. Em plena era de Frank Sinatra e Fred Astaire, o idioma em que Rousseau e Racine escreveram ocupava o primeiro lugar no pódio da preferência no Brasil e no mundo graças à obra e ao charme do aviador aventureiro Antoine de Saint-Exupéry, com seu citadíssimo Pequeno príncipe, leitura favorita das misses e paixão secreta de muito intelectual incapaz de confessar essa tentação.

Cá entre nós, antes de todo mundo dizer que "você é responsável por quem seduz", os romances de amor franceses é que faziam as mocinhas suspirar. E, mesmo depois de a aventura do mais encantador dos protagonistas literários em qualquer língua, figurar nas listas dos mais vendidos, também o pensamento contemporâneo transferiu-se do alemão (em que Kant e Marx escreveram) para a língua materna de Albert Camus e Jean-Paul Sartre. Nada é mais contemporâneo neste século 21 que o debate travado por esses dois gigantes do cérebro e da língua nos cafés de Saint Germain-des-près nos anos 40 e 50 do século passado em torno da ética na política, incluindo o terrorismo como arma de libertação – tudo lavrado na mais agradável e competente língua literária. A França, meus amigos, se deu ao luxo de produzir dois filósofos e militantes políticos cujo texto tinha uma qualidade literária inigualável, inclusive quando produziam literatura propriamente dita.

Quasímodo contra Apolo - Pois é. Mas isso não quer dizer que os franceses tivessem aproveitado bem isso. Como lembrou certa vez em entrevista (impagável como sempre) ao jornalista Pedro Bial na televisão, o dramaturgo e romancista paraibano (radicado em Pernambuco) Ariano Suassuna (de quem a José Olympio está relançando, enfim, a obra-prima A pedra do reino e o magnífico Iniciação à estética), numa contradição ética e estética, os franceses de então e de hoje sempre tiveram uma certa queda pelo conterrâneo baixinho e feio, que justificava os crimes de Stalin e Mao Zedong, preferindo-o ao apolíneo argelino (sósia de Humphrey Bogart), que se recusava, correta e corajosamente, a pôr em risco a integridade física da própria mãe em nome de princípios aparentemente corretos do ponto de vista político, mas execráveis dos ângulos ético e humanitário.

Os franceses, que preferiram Sartre a Camus, apesar de este ter estado sempre no lado certo, contudo, nem os lêem mais como deveriam, embora ambos tenham sido premiados com o Nobel, galardão máximo de um literato em qualquer idioma. Seu escritor favorito hoje não é Daniel Rondeau, cujo romance de mil páginas sobre o século 20 (La marche du temps, inédito no Brasil) arrancou elogios rasgados do célebre colega peruano Mário Vargas Llosa, nem Bernard-Henri Lévy, o novo filósofo que traçou o mais elegante, lúcido, corajoso e agradável ensaio filosófico-literário contemporâneo (Quem matou Daniel Pearl, lançado pela Girafa Editora entre nós). Mas um escritor traduzido de outra língua. E não do inglês – esperanto comercial e geopolítico, no qual se expressavam Ernest Hemingway e escreve J. D. Salinger – nem do russo – idioma materno de Alexander Soljenitsin, desbravador do Arquipélago Gulag – ou do castelhano de Gabriel García Márquez (de Cem anos de solidão). Mas, sim, do português. Pois é: na pátria de Molière e Mallarmé (que virou a poesia mundial pelo avesso com seu verso un coup des dés jamais abolira le hasard – um lance de dados jamais abolirá o acaso), um autor brasileiro é o mais vendido e o mais influente de todos. Seu nome: Paulo Coelho.

Enfim, a França se curva ao Brasil? Alto lá: nem tanto. "Menas", como se diria no petês da moda de hoje em dia. O êxito comercial e cultural representado pela venda extraordinária de nosso patrício na pátria da cultura e da estética literária em nada melhora nossa literatura nem torna Paulo Coelho (acadêmico como Corrêa da Costa e Ariano Suassuna, citados neste texto) um reencarnado Machado de Assis, gênio da raça e maior escritor brasileiro de todos os tempos, embora nunca reconhecido à altura de seu gênio no exterior, na França inclusive, talvez pelo fato de nosso idioma ser pouco representativo e estar em franca dissolução, por falta de cuidados de quem o fala e, principalmente, de quem nele escreve. Mas também não é conquista de pouca monta. É, ao contrário, algo que deveria merecer atenção e estudo que as miríades de textos produzidos na imprensa e na universidade sobre livros produzidos por outros escritores brasileiros, mais famosos e mais respeitados (alguns com as próprias estantes mais repletas de troféus que de livros), mas nem por isso não tão mais competentes que o "mago" como imaginam eles próprios e seus "exegetas".

Se o fato de não haver, neste momento, um escritor francês capaz de competir no Brasil com um escritor brasileiro em seu país, não pode ser motivo de ufanismo bobo, ele também não devia ser ignorado e desprezado como tem sido. Afinal, ao longo da história, o leitor comum francês tem mostrado mais apreço pela boa literatura que a maior parte da crítica brasileira.

José Nêumanne,
zeneumanne, como diz um certo Mauro Salles

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