JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados,
entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida e O silêncio do delator (clique ao lado para ler a fortuna crítica).
Coluna de 10/02
A democracia está ficando podre pela raiz
É irônico que Lula e Serra se associem contra a LRF
Neste início de ano e de novas gestões municipais, a democracia brasileira submete-se a dois riscos de retrocesso. Um é a desmoralização do arcabouço jurídico representado pela associação das Leis de Responsabilidade e do Crime Fiscais (LRF e LCF). O outro, o desafio das Câmaras Municipais de alguns municípios, com a cumplicidade da própria Justiça, à resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de enquadrá-las no figurino da ordem constitucional vigente.
Apesar de serem iniciativas das cúpulas de dois Poderes, e não das bases da sociedade – as duas primeiras exaradas do Executivo e a terceira emanada do Judiciário –, tais documentos legais estão sendo rasgados por uma ação conjunta de políticos mal-intencionados e juízes desavisados (para não escrever o pior), apesar de serem iniciativas positivas e modernizadoras. Pois elas dão à cidadania instrumentos para enfrentar dois males crônicos de nossa democracia incipiente: a corrupção deslavada e a cínica ditadura da elite política, que se empanturra de prerrogativas e dispensa todos os deveres e obrigações que o exercício de cargos de responsabilidade pública lhe exige.
Desde o Império, a Constituição do Brasil real pode ser resumida em duas leis informais, uma de extração popular e outra atribuída a um presidente republicano que governou quase o tempo inteiro sob estado de sítio, o mineiro durão Artur Bernardes: o "manda quem pode, obedece quem tem juízo" e "aos amigos, tudo; aos inimigos, o rigor da lei". Neste período pós-Nova República, o conjunto moralizador e modernizador representado pelas Leis da Responsabilidade e do Crime Fiscais passou a constituir, na prática, o primeiro grito de independência do "zé mané" da planície contra os manda-chuvas do Planalto. Dispositivos engenhosos do primeiro texto obrigariam os gestores públicos a serem mais vigilantes na aplicação de recursos públicos e a abandonarem vícios de antanho, sendo os principais deles o trato do erário como se fosse uma extensão das contas bancárias particulares dos gestores e a "gastança" desenfreada, passando aos sucessores a obrigação de cerzir os tecidos descontrolados das finanças públicas. Punições rigorosas, previstas no segundo documento, seriam a garantia de que esses dispositivos seriam obrigatoriamente cumpridos, pois, como se sabe, ninguém cumpre lei sem sanção.
Só que, enquanto a União e os governos estaduais tentam enquadrar-se nos rigores previstos por essas leis, partiu das administrações municipais recém-findas uma reação comum contra seus termos. Muitos ex-prefeitos, da esquerda e da direita, alinhados com o governo federal ou com a oposição parlamentar, fizeram pouco dos deveres por elas impostos e alguns manifestaram sua insatisfação em público e sem pudor. O anunciado pacto tácito entre petistas e tucanos para a União continuar repassando recursos para a Prefeitura de São Paulo, que passou do PT para o PSDB, será, se de fato existe, como comprovam as evidências, embora as declarações oficiais tentem negá-lo, o maior atentado da inércia burocrática contra os efeitos benéficos dessas leis e uma tentativa espúria de ressuscitar os preceitos da era do coronelismo, na qual a elite política dirigente mandava e desmandava, ao arrepio da vontade da multidão, que, no dizer do historiador, a tudo assistia, passiva e "bestificada".
É uma ironia do destino que isso resulte de de um pacto sinistro feito na calada da noite e no ambiente refrigerado dos gabinetes pelos líderes dos dois partidos que sempre se pretenderam instauradores da modernidade e comprometidos com os interesses da cidadania contra as ambições de poder absoluto dos donos do poder. Irônico também é que o governo Lula – acusado, nem sempre justamente, de copiar a política econômica ortodoxa e sempre queixoso da tal "herança maldita" do antecessor – patrocine esse "avante, companheiros, para trás", citando o título do romance de Deonísio da Silva, contra a mais meritória obra da gestão Fernando Henrique. E conte, para tanto, com a cumplicidade de um membro do primeiro escalão do ex-governo que hoje ocupa o segundo cargo executivo mais importante do partido tucano na administração pública brasileira. Por mais que o prefeito José Serra tenha motivos para manter excelentes relações com a cúpula petista no governo federal, em benefício do munícipe paulistano, submeter-se, para tanto, a garantir a impunidade de sua antecessora, que governou sem levar em conta os mínimos conceitos jurídicos e práticos da responsabilidade fiscal, é, no mínimo, condenável e lamentável.
Idêntica condenação devem sofrer os juízes de primeira instância que acolhem, a torto e a direito, em todo o território nacional, representações de Câmaras Municipais que descumprem as determinações do Tribunal Superior Eleitoral fixando o número de seus membros dentro dos limites previstos pela Constituição da República e de acordo com os princípios mais elementares da lógica matemática. Ao atenderem aos interesses específicos de chefetes políticos paroquiais habituados a distorcer os preceitos constitucionais, submetendo-os aos próprios mesquinhos interesses pessoais, sem levar em conta a decisão serena, equilibrada e correta da Justiça Eleitoral, esses servidores do Judiciário traem a nobreza de seu ofício e prestam um desserviço à construção de uma democracia impessoal e imparcial, tal como deseja a Nação, que assim se tem manifestado periodicamente nas urnas.
Enquanto os ex-prefeitos estróinas continuarem fora do alcance do braço punidor da lei e houver um vereador espúrio que seja, a LRF e a LCF e a resolução do TSE não passarão de letra morta, representando assim uma ameaça de apodrecer nossa democracia pela raiz.