JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados,
entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator  (clique ao lado para ler a fortuna crítica).

Coluna de 10/03

O baiano que fez fortuna na África vendendo gente

Um baiano de nascimento, súdito da Coroa Portuguesa, de nome Francisco Félix de Souza, foi o homem mais rico do Daomé, na costa africana, ao longo do século XIX e em pleno século XXI é reverenciado por descendentes e antigos protegidos, por ter sido o primeiro a receber o título de Chachá, dignidade conferida pelo rei negro local ao branco mais importante do lugar. Quando morreu, não se sabe se aos 94 ou aos 81 anos (os dados disponíveis a respeito são contraditórios), há notícia de que eram vivos 51 de seus filhos, dos quais se conhecem pelos nomes 63, 34 mulheres e 29 homens. Mas há quem garanta que reconheceu e batizou mais de uma centena (80 só do sexo masculino) na capelinha do forte português de São João Batista, de que fora comandante, na cidade onde passou a maior parte de sua vida e onde construiu seu império comercial, primeiro de escravos e depois também de azeite-de-dendê - Ajudá.

De como viveu e enriqueceu esse brasileiro é possível tomar conhecimento agora graças à meticulosa e obsessiva pesquisa do maior especialista em história africana no Brasil, o poeta, diplomata e acadêmico paulistano (embora se considere natural do Piauí, Estado de seu pai, de quem herdou o nome e o estro poético) Alberto da Costa e Silva. Ao longo de toda sua vida, o autor colecionou documentos e compulsou fragmentos para assim compor o retrato de alma inteira de um ser humano complexo e contraditório, que foi o maior mercador de escravos negros de seu tempo, mas também o principal protetor e até padrinho de ex-escravos que voltaram à África natal e ali se estabeleceram, tornando-se eles mesmos negociantes bem-sucedidos e instalando uma vasta e próspera comunidade afro-brasileira em seu continente de origem. O resultado da consulta a esses documentos e de uma longa conversa com o grande especialista em folclore da Bahia Pierre Verger resultou no texto de Francisco Félix de Souza, mercador de escravos, obra recém-lançada em nosso mercado editorial.

Do certo ao não sabido – Dispondo dos recursos de extraordinário manejo do vernáculo de poeta e do cabedal de conhecimentos de ensaísta respeitado e historiador de renome, Costa e Silva atrai o leitor para um conluio sedutor: o passeio pelo cipoal de informações desencontradas existentes sobre a vida do biografado. Para tanto, conta com a bússola de uma erudição extraordinária sobre o terreno que pisa – a história do tráfico de seres humanos cruzando o Atlântico nos séculos XVIII e XIX. Entre o que de certo transmite o leitor e o que ele mesmo não pode garantir com certeza, o autor teceu um texto cúmplice, uma teia de fatos notórios e hipóteses sedutoras, para a qual atrai o leitor como se o guiasse pelas estepes africanas e pelos perigos de um mar infestado de tempestades e naus britânicas encarregadas de zelar pela proibição da mais poderosa marinha do mundo à época do transporte de seres humanos negociados como se mercadorias fossem para o trabalho não remunerado em fazendas brasileiras e cubanas, principais mercados de Francisco Félix de Souza.

Com o conhecimento sobre o assunto limitado a algumas linhas no capítulo que trata da vergonha nacional de ter sido o Brasil o último país do Ocidente a abolir a escravidão e ao discurso que a ela se opunha nos versos de Castro Alves, baiano como o Chachá, ou na rica prosa panfletária do pernambucano Joaquim Nabuco, o leitor leigo passa a receber informações novas e preciosas a respeito da cultura africana, produtora de mão-de-obra escrava em suas sangrentas guerras civis, que até hoje disseminam a miséria e a infâmia pelo continente inteiro, com repercussões no mundo.

De pária a grão-senhor - Nesse ambiente de rivalidades tribais, o instinto comercial de brancos ou mestiços egressos do Brasil escravagista encontrou a oportunidade capaz de fazer de um pária, possivelmente foragido da lei, como o biografado, um grão-senhor, capacitado a pagar antecipadamente em moedas de ouro as baixelas de prata importadas da Europa nas quais fazia questão de servir opíparos e hospitaleiros banquetes aos mais inusitados e inesperados hóspedes. Estes tanto podiam ser tripulantes dos vasos de guerra britânicos que apreendiam seus navios negreiros no mar ou escravos que ele próprio vendera para proprietários brasileiros e que de volta África em busca da liberdade e da fortuna (o que não era incomum achar, como havia ocorrido com ele mesmo), nele encontravam afeto e proteção paternais.

Com uma inteligência fora do comum, uma imensa habilidade no trato comercial e a amizade do dadá (rei local) Guezo, reforçada por um pacto de sangue entre os dois, o fundador do imenso clã dos Souza desfilava pelas ruas de Ajudá precedido por músicos dançarinos e sob coloridos guarda-sóis, como se fosse um soba (chefe tribal) africano. Até hoje celebram seu natalíciio, 4 de outubro, em Daomé, onde foi também pioneiro na exportação de azeite-de-dendê (cultivada inicialmente para alimentar os escravos transportados) para Cuba, Brasil e Europa, atividade que primeiro complementou e depois substituiu o tráfico negreiro. Só que o Chachá manteve até a morte a atividade de origem de sua fortuna - o tráfico de pessoas agrilhoadas -, embora os apresamentos de muitos navios de sua frota imensa o tenham levado à beira da falência. "Como escreveu um contemporâneo, mercadejar com escravos era mais do que um ofício: era como o vício do jogo e transformava-se com o tempo numa excitante paixão", explicou Alberto da Costa e Silva.

« Voltar