JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados,
entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida e O silêncio do delator (clique ao lado para ler a fortuna crítica).
Coluna de 17/03
O resgate da delicadeza pela cultura do povo
É notório o processo de "barbarização" da cultura de massas no Brasil. No caso da música popular, esse processo chega a ser mais ululante que o óbvio definido por Nélson Rodrigues. Os alto-falantes sobre rodas que circulam pelas ruas das cidades brasileiras – em Campina Grande, na Paraíba, ou em Barra do Piraí, no Estado do Rio - desafiam a economia formal, pois propagam produtos piratas da indústria fonográfica; o conceito de autoria, porque não há como remunerar os autores pela execução de suas obras; a higiene pública, por serem agentes da poluição sonora; e o bom gosto, já que propagam um lixo cultural cujos baixo nível e grosseria superam quaisquer monturos estéticos jamais produzidos em qualquer tempo neste País. Além de todos os defeitos e vícios aqui denunciados, esse novo tipo de comércio clandestino, mas reconhecido pela autoridade que, além de não reprimi-lo, ainda cobram taxas para permiti-lo, esse nivelamento por baixo da produção musical nacional implica um terrível prejuízo de imagem para a indústria cultural popular, ao permitir a confusão da exacerbação do mau gosto com sua origem plebéia.
A entrada de um produto nobre e popular, de finíssima qualidade e extremo bom gosto, como é o caso do CD duplo Responde a roda outra vez é, sem nenhuma pretensão de apelar para o facilitário do trocadilho, uma resposta digna a essa onda de avacalhação do produto musical de extração popular pelos piratas fonográficos. As 57 faixas gravadas pelo etnomusicólogo carioca radicado em João Pessoa (PB) Carlos Sandroni, com a ajuda do cientista social Marcos Ayala e da professora de literatura Maria Ignez Ayala, ambos paulistanos residentes em Recife (PE), são as provas sonoras definitivas de que, além de inverídica, a desqualificação da música composta e interpretada pelos brasileiros simples e pobres do interior é uma injusta amostra de preconceito. A verdadeira música de extração humilde e popular não é a pirateada pelos carrinhos de mão que infestam as praças e ruas de nossas cidades, mas sim a registrada pelos gravadores com que a equipe de Sandroni visitou comunidades pobres dos Estados de Paraíba e Pernambuco. O resultado de seu trabalho, o CD duplo em que parte da pesquisa foi inserida será conhecido hoje em São Paulo, no Centro Cultural São Paulo (Sala Adoniram Barbosa), Rua Vergueiro, 1000, Paraíso (tel: 11 3277-3611), e será comercializado (a R$ 50) nas lojas de discos do Brasil. Para o lançamento está previsto um espetáculo com alguns dos artistas que contribuíram para a pesquisa: o mestre da Maruja de Areia (Paraíba), Seu Eduardo Silvestre; o cantador de Patos (Paraíba) Fenelon Dantas e o Samba de Coco Raízes de Arcoverde (Pernambuco).
O roteiro de Mário – A idéia original do projeto, de Carlos Sandroni (filho dos escritores Laura e Cícero Sandroni e neto do célebre acadêmico Austregésilo de Athayde), foi refazer o roteiro da famosa Missão de Pesquisas Folclóricas, enviada pelo poeta e então diretor Cultural da prefeitura de São Paulo Mário de Andrade ao Norte e Nordeste brasileiros em 1938. Limitou-se, contudo, a visita aos Estados de Pernambuco e Paraíba.
Ao refazer o caminho da Missão pioneira 66 anos depois, os três pesquisadores encontraram parentes, alguns dos quais descendentes, dos artistas populares que foram abordados pelos enviados do autor de Macunaíma. Foi o caso de Miracy Pereira de Melo e Maria da Conceição Barros, intérpretes, ao lado de Maria Rosa da Silva (Maria Preta), das canções Oh, roseira e Mandei cortar capim, cantadas por sua mãe, Alzira Pereira. Além delas três, essas músicas foram gravadas agora também por Senhorinha Freire, agora aos 86 anos, moradora de Jaboatão dos Guararapes, na Grande Recife, e que participara da gravação original para a Missão, em Tacaratu, no sertão pernambucano, quando tinha 20 anos.
O caso de dona Senhorinha é tocante, mas não é único. Em 1997, Sandroni encontrou-se em Tacaratu com seu Domingos Cunha, filho de Raimundo Cunha, um dos informantes da Missão Mário de Andrade. Dois anos depois, Maria Ignez e Marcos Ayala conheceram em João Pessoa seu Biu Saloia, que fora filmado em 1938 na Barca da Torrelândia na capital paraibana.
Responde a roda outra vez – Música tradicional de Pernambuco e da Paraíba no trajeto da missão de 1938, uma realização do Núcleo de Etnomusicologia da UFPE, em colaboração com o Laboratório de Estudos da Oralidade – UFPB, a Associação Respeita Januário (PE) e o Coletivo de Cultura e Educação Meio do Mundo (PB), com patrocínio da Petrobrás e apoio da Fundação Vitae, não tem, é claro, como concorrer com os CDs piratas de grupos popularescos de forró Calcinha Preta vendidos a R$ 5,00. Nem se propõe a isso. Mas é o atestado de que o universo da cultura verdadeiramente popular não deve ser confundido com um valhacouto da grosseria e do mau gosto, mas visto como o abrigo da beleza, da simplicidade e da delicadeza.