JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados,
entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator  (clique ao lado para ler a fortuna crítica).

Coluna de 31/03

Memórias de um padre, com fé e franqueza

"Eu bem quisera, quando chego a ver-te, / vendo este infame amor, poder negá-lo; / porém logo a razão justa me adverte / de que só há remédio em publicá-lo: / porque do grão delito de querer-te só é pena bastante o confessá-lo." Com estes versos fortes e pungentes, a bela e avançada Sór Juana Inés de la Cruz, cuja devoção devo a Octavio Paz, autor de dois alentados volumes sobre ela, aborda o dilema cruel do religioso católico que, tendo de amar apenas Jesus Cristo, só pode amar o próximo dele se distanciando e vendo-o como coletivo, jamais como indivíduo. Esse dilema emerge de forma delicada, mas não menos atroz, no texto confessional que vem de ser trazido a lume pelo sociólogo, acadêmico e antes de tudo soldado da Companhia de Jesus Fernando de Bastos Ávila, carioca e quase centenário.

No livro A alma de um padre - testemunho de uma vida>, Ávila aborda esse paradoxo, recordando, com recato mas sem remorso, os pouco freqüentes, mas nem por isso menos importantes, episódios de sua vida em que o encantamento estético por uma pessoa do sexo oposto se não o desviou da vocação religiosa foram marcantes a ponto de serem lembrados na idade provecta. Tal abordagem é feita com parcimônia retórica, mas bravura espiritual. Não pode ser desprezível a franqueza de um servo de Deus (e ainda mais com a fama cavilosa que tem a ordem religiosa a que pertence, de missionários mais respeitados pela combatividade que pela ética) - e particularmente de uma geração criada antes dos avanços do aggiornamento promovido nos anos 60 do século 20 pelo Papa João 23.

Relato sem hipocrisia - Convém anotar desde já que tal franqueza não se cinge aos conflitos internos provocados pela submissão das ânsias da carne às ambições do espírito, mas também ao convívio, nem sempre fraterno, entre os colegas de opa. O cândido relato do padre Ávila não poupa desafetos nem oculta idiossincrasias. Passa, portanto, a anos-luz de qualquer laivo de hipocrisia.

Neste particular, simpatias e antipatias do autor comparecem às lembranças pessoais do autor sem disfarces, nem sequer o da falsa modéstia. Essa característica do texto, além de sua qualidade literária indiscutível e de sua verve contagiante, torna a experiência pessoal de quem o lavrou algo útil a quem o deletra. Neste livro, o leitor encontra o encanto que o dom de escrever confere às memórias de poucos homens ilustres que se aventuram à difícil missão de falar de si mesmos. Esse dom faltou a Paulo Duarte, de vida relevante, mas narrada sem parcimônia e com enfado, assim como sobrou em Pedro Nava, que, ao recordar com brilho uma vida comum, expôs o gozoso mistério da boa literatura: menos importa a história a contar que o jeito de narrá-la. Recorrendo a exemplo mais remoto e clássico, é ainda o caso exemplar de Joaquim Nabuco, de cuja obra-prima, Minha formação, padre Ávila transpôs o título para um capítulo, reservando-se a um instante de humor, soltando numa notinha de pé de página a sutil (e gentil) boutade: "Joaquim Nabuco me desculpe, se, cem anos depois, me aproprio do título de sua obra imortal." Revela a anedota mais que sense of humour de quem a criou, a humildade do reconhecimento do pecado (do furto), embora com a atenuante de ser este venial, tornando-se, então, paradoxalmente quase uma virtude.

O pecado da pobreza - Paradoxo e pecado mortais na edição deste original livro de memórias, no qual um diário remoto é anexado ao fim de cada capítulo recém-escrito, é o de sua pobreza. A capa, com as duas mãos em súplica dirigidas a um bólido solar, lembra aqueles folhetos tão bem-intencionados quanto mal realizados graficamente distribuídos aos fiéis nas missas de domingo. A diagramação é mais coerente com a capa modesta que com o nível do texto. E a revisão podia ter sido bem menos negligente.

É um pecado, que a Edusc, com as bênçãos da Academia Brasileira de Letras, tenha criado, com essa amadora displicência editorial, um obstáculo entre o leitor comum e a obra. Restam-nos a fé e a esperança paulinas de que o leitor, acautelado, releve tais defeitos e tome conhecimento de um texto de alta qualidade literária, muita decência e grande respeito - virtudes raras no cenário conturbado e grosseiro de nosso mercado editorial.

A alma de um padre - testemunho de uma vida, de Fernando Bastos de Ávila, Edusc e Academia Brasileira de Letras, 2005, 414 pp.

« Voltar