JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator  (clique ao lado para ler a fortuna crítica).

Coluna de 24/04

Enterro não é festival, gente!

No sábado 2 de abril de 2005, em que Sua Santidade o Papa João Paulo 2 faleceu, ouvi, pela excelente e completa cobertura da Rádio Jovem Pan, de São Paulo, um óbvio indício de descontentamento da cúpula da Igreja Católica Romana no Brasil com Luiz Inácio Lula da Silva e seu governo. Fernando Zamith e Madeleine Lasco estavam entrevistando o cardeal Dom Eusébio Scheid, arcebispo do Rio de Janeiro, e esta lhe fez uma pergunta sobre a sucessão no Vaticano. Pediu-lhe, porém, um minuto para que a emissora pudesse transmitir ao País o pronunciamento oficial do presidente da República, de Brasília. “Não, senhora, se for assim, agradeço e me despeço. Mas não misture minha palavra com a palavra do Lula”, retrucou o cardeal.

Apesar de ter ouvido, ao vivo, on real time , este desabafo do prelado, surpreendi-me, como cidadão e como jornalista, com as duras palavras dele, em entrevista dada, ao desembarcar em Roma, aos repórteres que o indagaram sobre a eventual escolha de um brasileiro para o lugar do Papa polonês. Num resumo rápido do que ele disse, classificou o presidente não como “católico”, mas “caótico”; garantiu que Lula e o Espírito Santo não se dão muito bem; acusou-o de explorar politicamente a morte do chefe da Igreja; e ainda o chamou de “boboca”, comentando uma foto em que este posou ao lado do tirano cubano Fidel Castro. Outro eleitor do sucessor de Karol Wojtyla, o cardeal Dom Cláudio Hummes, arcebispo de São Paulo, jogou água fria na fervura no dia seguinte e o próprio arcebispo do Rio tentou reduzir a repercussão de suas duras palavras tentando cingi-las ao contexto da pergunta que lhe foi feita.

Na verdade, o mal estar entre a cúpula católica e o PT data da última eleição presidencial quando a chapa do partido para a Presidência da República foi composta com um representante das seitas evangélicas, o então senador mineiro José Alencar, das hostes do PL, partido sabidamente controlado pelo “bispo” Edir Macedo, comandante da Igreja Evangélica do Reino de Deus, cujo perfil ético não é propriamente admirado pelos bispos brasileiros. A direção da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) chegou a se manifestar sobre seu receio de eventuais concessões à ética que os petistas teriam de fazer nessa aliança pragmática, considerada por estes fundamental para a vitória, mas vista com reservas pelos aliados históricos.

Quando uso a expressão “aliados históricos”, não recorro a uma figura de retórica, mas me reporto a um dado da realidade. Lula, o Metalúrgico, emergiu do anonimato nacional na presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, na condição de livre atirador no sindicalismo e na política. Sua postura se opunha à manipulação das massas operárias pelo Estado brasileiro, velha manha varguista, mas também pelos comunistas do Partidão. Seu discurso era, então, antipolitizante ao extremo. Ficou célebre sua entrevista ao Vox Populi , da TV Cultura de São Paulo, em que manifestou sua independência, não só em relação à ditadura militar e tecnocrática no comando do Estado, mas também à oposição civil e democrática, mormente os estudantes e os católicos progressistas, filiados à Teologia da Libertação. A brusca mudança se deu quando Lula liderou a greve dos metalúrgicos, o governo interveio no Sindicato, o prendeu no DOPS, mas a greve continuou, graças ao apoio que os grevistas receberam da Diocese de Santo André, cujo titular, o mesmo Dom Cláudio Hummes que hoje participa do conclave, cedeu seus templos para as reuniões e escalou um irmão leigo dominicano, Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, para acompanhar a movimentação e até servir de líder informal do movimento paredista. Desde então, a cúpula católica e Lula tiveram excelentes relações, a ponto de a reunião de sindicalistas que decidiu fundar um partido específico para os trabalhadores, o PT, se ter dado em encontro promovido pela Diocese de Lins, no interior de São Paulo.

Talvez Dom Sheid não esteja informado desses pormenores. De qualquer maneira, o duro “caótico” em vez de “católico”, pode até definir politicamente o governo, mas não o chefe. Como disse o próprio Lula, com o aval do velho amigo Dom Cláudio Hummes e do colunista Elio Gaspari, em texto publicado na coluna que este mantém aos domingos nos jornais O Globo e Folha de S. Paulo , Lula é, católico, sim! Só que, como 95% (estatística empírica, é claro) dos católicos brasileiros, ele pratica pouco a fé professada e está pouco inteirado da doutrina e das práticas litúrgicas da Igreja. É um católico, digamos, festivo, como, aliás, muitíssimos o somos.

Isso explica, embora não justifique, a série de erros crassos por ele cometido no episódio. O primeiro de todos foi perpetrado exatamente naquele pronunciamento que Dom Sheid não deixou que os ouvintes da Pan tomassem conhecimento na hora. Nele Lula pregou a escolha de um Papa brasileiro. Primeiramente, este assunto não é de sua alçada, mas dos cardeais do conclave. Em segundo lugar, era hora de exaltar a figura do morto, grande campeão da tolerância e do ecumenismo, portanto um guerreiro contra os dois maiores pecados da humanidade nesta nossa era: a intolerância e o fanatismo dito fundamentalista (seja religioso, seja político). Em defesa de Lula, pode-se dizer que um hierarca católico, o sulafricano Desmond Tutu, incorreu no mesmo dia em descortesia semelhante, ao lançar a candidatura de um Papa africano. Mas ficou do pronunciamento presidencial a impressão de que ele incluiu o conclave em velhas fantasias nacionais, do primeiro Oscar brasileiro ao primeiro Prêmio Nobel brasileiro.

Lula voltou a se comportar de forma inadequada quando armou um verdadeiro piquenique aéreo para levar convidados ao sepultamento do Pontífice. Para seu jato convidou os ex-presidentes José Sarney e Fernando Henrique, o rabino Henri Sobel, dirigentes da CNBB e a mãe de santo Ditinha. O chanceler Celso Amorim, sempre disponível para encontrar justificativas diplomáticas para os equívocos da chefia e possivelmente autor do palpite infeliz, tentou justificar a mistureba com o espírito ecumênico do brasileiro. Tolice! O episódio todo só revela a supercialidade festiva de que se farta um governo que só consegue raciocinar em termos de marketing e com objetivos reeleitorais. E, embora se possa criticar o arcebispo do Rio por haver, talvez, ultrapassado os limites da civilidade e do respeito devido a um alto mandatário leigo eleito pelo povo, assim como condenar a nota grosseira da chancelaria argentina, referindo-se à viagem de Lula como de “interesse pessoal” para justificar a ausência do presidente do país vizinho, Néstor Kirchener, não se deve omitir a impropriedade do governo brasileiro ao encarar o enterro de um Papa como uma oportunidade eleiçoeira, política e de imagem pessoal internacional para Lula (e nisso Dom Sheid não deixa de ter razão). O convite aos cardeais para se integrarem ao “vôo da tristeza” (uma versão aérea da expressão “trem da alegria” usada para expedientes similares) foi de uma grosseria inexplicável, semelhante à descortesia de deixar de convidar um ex-presidente vivo, Fernando Collor de Mello.

Quem acha que o autor destas linhas está exagerando está convidado a ler a entrevista de um dos passageiros do velho Sucatão, avião convocado para transportar os convidados que não couberam no avião novo do presidente, jocosamente apelidado pelo povinho de Aerolula. O embaixador brasileiro em Cuba, Tilden Santiago, ex-padre e devoto freqüentador de comemorações festivas, foi o melhor porta-voz do espírito que comandou a caravana de brasileiros que viajaram a Roma sem dar a mínima para os apelos do Vaticano para que não se continuasse a aumentar o caos em que a Cidade Eterna se encontrou nos dias em que foi cenário da “maior notícia de todos os tempos”, definição dada pelos próprios meios de comunicação. Para ele, que já acompanhara o sepultamento de João XXIII, enterro de Papa é uma “festa”, no mínimo um festival. Mais que uma interpretação livre, leve e solta das palavras do decano dos cardeais, o alemão Dom Joseph Ratzinger, que, na homilia da missa de corpo presente de Karol Wojtyla, falou da mistura de dor e serena alegria dos 300 mil fiéis que lotaram a Praça de São Pedro, esta constatação é a melhor definição do espírito de festividade em que um governo louco por marketing traduziu: o espírito folgazão e irresponsável de catolicismo despreocupado e festivo com que o País e o presidente trataram um tema grave como é a falta que fará uma das personalidades mais marcantes do gênero humano no século XX.

É o caso de lembrar as palavras amargas, mas generosas, do Crucificado à cúpula federal reunida no impróprio tour festivo (“na Igreja, o luto é vermelho”, lembrou o embaixador Tilden Santiago): “Perdoai-os, Pai, eles não sabem o que fazem!”

« Voltar