JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL (clique no título da obra para ler a fortuna crítica).
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Coluna de 08/09

A herança bendita

“Quando você não tem razão, só lhe resta apelar para a emoção”. O autor destas linhas não tem a menor idéia de quem possa ter dito esta frase. Na verdade, ele acaba de cunhá-la e, se afirmasse que se trata de um provérbio chinês, seria muito difícil alguém provar que não o é. Aliás, nem nisso ele seria original, pois reza o folclore que a primazia da piada é do ex-ministro Roberto Campos. Dono de uma lógica implacável, senhor de uma cultura rara, “Bob Fields” costumava usar como epígrafes de seus artigos mordazes reproduzidos na imprensa um corolário admirável de “provérbios chineses”. Quando um amigo questionou a fonte inesgotável de sua sabedoria oriental, o ex-ministro da Fazenda recorreu a um truísmo: “Havendo mais de um bilhão de chineses, é virtualmente impossível que algum deles não tenha dito isso”.

Mas bem que o marqueteiro Duda Mendonça poderia ter dado o conselho a Paulo Maluf ao lhe apresentar a estratégia para evitar a sexta derrota consecutiva do, et pour cause , candidato a Paulo 6°. E sob a égide de um coração vermelho, parecido com aquele usado no cenário de Agustín , o balé do Grupo Corpo sobre o santo africano, e ao som de Bate coração , clássico da música nordestina de Antônio Barros e Cecéu imortalizado por Marinês e Elba Ramalho, que o mais impermeável dos homens públicos brasileiros ganhou uma imagem humana e a única eleição direta na vida toda.

Quando Maluf ganhou aquela eleição para a Prefeitura de São Paulo, Jânio Quadros já havia passado pelo mesmo gabinete (e desinfetado a cadeira em que Fernando Henrique se havia sentado para posar para um fotógrafo) trocando o racional pelo emocional. Nesse caso, a verdade era apenas um detalhe insignificante. Ao saber que um marido traído havia abatido a tiros seu pai, o deputado oposicionista Gabriel Quadros, que ganhara a vida fazendo assepsia de genitálias masculinas no baixo meretrício em São Paulo, pulando o muro de sua casa de vila em São Bernardo do Campo, o então governador Jânio negou-se a pronunciar uma palavra piedosa sobre o homem que cunhara a frase mais tarde repetida pelo general Golbery do Couto e Silva a respeito do SNI: “Eu criei um monstro!” Mas isso não impediu que em campanhas posteriores, entre soluços pungentes, o “paulista de Mato Grosso” se dissesse um homem marcado pelo destino, pois seu pai tinha sido “vilmente assassinado”.

Portanto, este escriba de memória incômoda não se espantou nem se decepcionou ao verificar as tentativas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de se comunicar com o lumpesinato que o levou à Presidência apelando para o tema de Vicente Celestino, “coração materno”. Sua mãe, para a qual ele pede o reconhecimento público da condição de nascitura iletrada (como de resto a minha, a sua e a de qualquer um, pois ninguém aprende a ler no atro e úmido ventre materno), tem sido a mais recorrente das citações de auto-ajuda a que Sua Excelência recorre em seus discursos. E esporadicamente, também a seu pai. Aquele execrado camponês pernambucano que abandonou a família no Nordeste e constituiu outra no Sudeste tem tido sua imagem recuperada, assim como o velho Gabriel Quadros, nos discursos do filho ilustre em sua tentativa de recuperar a velha imagem de paladino dos mais pobres e da moral pública.

OK, tudo bem, você venceu, batatas fritas! Mas talvez o presidente não precisasse exagerar ao tornar o abandono do lar pelo pai uma herança bendita. Lula pode ser chamado de tudo por seus inimigos, menos de mau pai: ele não abandonou o primogênito Fábio Luiz às feras da imprensa e da oposição, que não o perdoam por ser sócio de uma micro-empresa à qual se associou uma poderosa multinacional. “Não sei o que meu filho faz, mas ele não me colocaria numa fria”, disse. E duvidar quem há-de?

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