JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL (clique no título da obra para ler a fortuna crítica).
Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor
Coluna de 6/10
Verdades e mentiras do poder
Profanação é o romance de um mestre do ofício sobre o ofício que ele domina. Ambientado em Brasília à época da escolha do mineiro Tancredo Neves para dar início à nova fase da República brasileira, após o desabamento do regime militar sobre os próprios pés de barro, seu texto trata do poder demiúrgico da palavra e a deturpação dele por um profissional de notório talento na manipulação do discurso escrito e oral. A degeneração do discurso, posto a serviço de interesses inconfessáveis, conduz à degeneração do autor – não do livro em si, mas do texto sobre o qual o livro se constrói, as memórias de um tal Gregório Pedra, ghost writer de profissão e manipulador político por vocação.
Tal como o autor do romance, seu protagonista chegou a Brasília para ser repórter político. Não há lugar mais adequado para exercer esse ofício no Brasil atual: na capital brilham os próceres da oposição e, sobretudo, os manda-chuvas do governo; e para lá acorrem os agentes econômicos que administram interesses pesados do Produto Interno Bruto e representantes de praticamente todas as camadas sociais do País. Não é fácil circular naquele rio cheio de crocodilos, com armadilhas armadas a cada curva e corredeiras secretas correndo sob remansos aparentemente pacíficos. Ao repórter político cabe uma missão dificílima: ele não pode se afastar demais das “fontes” de suas informações de primeira água, pois se as perde não tem o que oferecer a seu público. Mas também se se aproximar demais, pode criar uma intimidade que acaba por submetê-lo aos grandes interesses a que servem o jogo sujo da política. Sua posição ideal é aquela do meio termo magistralmente descrito nas instruções que o Condestável da Velha República, o senador gaúcho Pinheiro Machado, deu ao motorista, ao atravessar uma manifestação de punhos erguidos e cenhos cerrados de estudantes nas ruas do Rio de Janeiro: “nem tão devagar que pareça provocação, nem tão rápido que pareça covardia”. O motorista do senador conseguiu levá-lo ao fim da viagem. Nem sempre os repórteres políticos, contudo, realizam essa proeza. Ruy Fabiano conseguiu, mas sua criatura Gregório Pedra sucumbiu à sedução fácil do poder e da lisonja.
A sedução do poder – É difícil demais resistir à sedução do poder político, que é “afrodisíaco”, como gostava de definir Ulysses Guimarães, com quem o autor de Profanação conviveu, como repórter, e que teve papel capital nos fatos relatados com precisão, economia e elegância nos dois terços iniciais do romance. Não deve ter sido pouca a quantidade de cera à qual o cronista parlamentar e colunista político teve de recorrer para, como os marinheiros de Ulisses em seu célebre périplo clássico, resistir ao canto da sereia do poder de comando sobre os negócios republicanos. Aos 51 anos, jornalista há 33, em Brasília por 26, este carioca de clã de origem paraibano, foi titular da coluna de análise política da página 2 do jornal Correio Braziliense , primeira leitura de todos os políticos poderosos do Cerrado, entre os quais os presidentes da República, em todo o período enquanto ela durou. Foi também articulista da Agência Estado .
Só que, em vez de cair nas armadilhas de virar político, lobista ou burocrata poderoso, sucumbindo à tentação de usar o talento de misturar verbos e pronomes como fonte de ganho e instrumento de prestígio político ou social, este irmão do gênio do violão Raphael Rabello preferiu se deixar cair no conluio sedutor da literatura. No auge da carreira de colunista respeitado, Ruy Fabiano abandonou as redações para tentar realizar um sonho antigo, de adolescência, o de virar escritor. Profanação não é o primeiro fruto dessa tentativa. Antes de enveredar pelo romance, tentou a narrativa curta e produziu uma coletânea de rara maestria literária, Os arquivos de Deus , nos quais treinou seu estro, já demonstrando na estréia um manejo da língua invejável e incomum de ser encontrado entre colegas já tidos como consagrados pela crítica e pelo público.
Guia de cego - Estreando com um romance, como convém a um escritor de seu porte, ele traz à literatura a figura de Gregório Pedra, que seguiu o caminho inverso ao seguido por ele. Em vez de se dedicar profissionalmente ao amanho da palavra, como pastor atento que provou ser, seu protagonista “profanou” o verbo, usando-o como instrumento de ganho, prestígio e poder. Isso também foi sua perdição. Ruy Fabiano , seu criador, o orienta ao longo das páginas do livro como um guia faria com um cego de quem não gosta tanto quanto deveria. Cumpre seu dever de guia, conduzindo-o com elegância de linguagem e trato discreto, mas não o poupa de uma visão crítica arguta e profunda, demonstrando conhecimento de causa, tirocínio e uma alta carga de ironia.
Na aparência, Profanação é uma competente reportagem política, pautada, escrita e dominada por um profissional de escol no ramo. Mas é muito mais: é a melhor literatura , pois contém aquele elemento fundamental nesta, qual seja a capacidade de encontrar a verdadeira natureza da verdade em fatos que nunca existiram, mas foram apenas inventados pelo autor. O que a crônica pode desperdiçar no amor exagerado ao detalhe, a ficção recupera na liberdade que ela permite ao autor de percorrer as trilhas do registro e da invenção, sem que ao leitor seja revelado o que é cada uma delas. O mestre nesta arte, talvez o maior de todos, o portenho Jorge Luís Borges, tem no contista de Os Arquivos de Deus e no romancista de Profanação um discípulo à altura, capaz de contar a verdade inteira ao leitor sem poupá-lo das mentiras mais insidiosas.