JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL (clique no título da obra para ler a fortuna crítica).
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Coluna de 24/11
A patota do buraquinho
Muitas vezes na História do Brasil ficou patente o divórcio existente entre a massa popular e a nata dirigente. É clássico o estudo de José Murilo de Carvalho sobre como as massas assistiram, “bestializadas” (a expressão é dele), a substituição do Império dos Braganças pela República dos marechais. Mas poucas vezes nos foi dado ter uma medida estatística desse fosso abissal entre a vontade popular e o bem-pensar dominante como no referendo que decidiu sobre a fabricação e comercialização de armas de fogo no Brasil, em 23 de outubro. Como já foi fartamente noticiado, 64% dos cidadãos preferiram deixar tudo como dantes no quartel de Abrantes, enquanto 36% se manifestaram contra esse comércio. A diferença – de 28 pontos percentuais – registra, antes de tudo, o avassalador protesto da população, que percebeu claramente como a turma do arranha-céu tentou tirar o corpo fora e transferir para o porão a responsabilidade pela intromissão indevida do Estado estróina e truculento na vida privada de cada cidadão. Este viu, com clareza meridiana, que o jeito de protestar contra essa absurda tirada de corpo fora não era simplesmente anular o voto, mas meter-lhes um zero ( não ) nos peitos, como diria meu folclórico professor de Química no científico, Paulo Burundai. “Vade retro”, berrou a maioria. E foi logo avisando: “Minha casa, meu castelo!”
Apois! A campanha do sim apostou na burrice generalizada do povo, tentando convencer os incautos de que arma mata, como se gatilhos não tivessem de ser puxados para tiros serem disparados. Nesse mister, esse bando de mentirosos se comportou como o pistoleiro-filósofo João de Carminha, que se jactava num cabaré de Campina Grande chamado Unidade Moreninha: “Quem mata é Deus, eu só faço o buraquinho”. É a “patota do buraquinho” - artistas globais e intelectuais bem-pensantes, alguns dos quais, arrebanhados pelo sempiterno stalinista Oscar Niemeyer, tentaram salvar a pele do comissário Zé Dirceu do esfolamento. Todos cinicamente se fazendo de anjos de plantão. Raras exceções de lucidez foram Millôr Fernandes e Raimundo Fagner, que, na revista semanal Veja , denunciaram essa devoção ao “politicamente correto”, que manda a lógica dos fatos às favas.
O resto da “manada” (a expressão é de Fagner) preferiu fazer o joguinho sub-reptício do governo do Aerolulinha, que, sujo que nem pau de galinheiro por causa dos escândalos de corrupção, como se diz na Boca Maldita, em Curitiba, se acomodou atrás da consulta popular, certo de que a população ficaria menas indignada contra a roubalheira e de que tosquiaria as lanas caprinas de sua malograda política de insegurança geral. Zezé di Camargo quer receber o que o PT lhe deve, como lembrou o moço de Manera, frufru, manera . E dom Chico Buarque do Leblon sempre contou com a amnésia ampla, geral e irrestrita com que a Nação favelada costuma agraciar seus ídolos.
Como nesta República da Conceição, onde ninguém nada sabe nem nada vê, o único a enxergar era o cego Jatobá (da novela América), a social-democracia tucana de cima de seu muro da vergonha, nem ouviu o óbvio ulular. Como chamou nossa atenção geral o jornalista Carlos Chagas, em comentário na Rádio Jovem Pan, TODOS os pretendentes ao trono de Lula em 2006 bancaram os mocinhos corretos e espertos votando sim contra o tsunami popular. O alcaide Serra, o professor Cardoso e o governador Picolé de Xuxu seguiram dona Marisa Letícia e ignoraram as próprias bases. Tucanos e petelhos, irmanados na insensível cegueira geral, atolados até a cintura no pântano ético e refestelados na pizza da mútua impunidade, de costas para os anseios e necessidades da maioria, deram de novo razão ao diagnóstico de um colega deles em correção política, San Thiago Dantas: este percebeu o abismo que existe entre as qualidades inerentes da massa patrícia e os vícios sem remédio dos donos do poder. Arre égua!