JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL (clique no título da obra para ler a fortuna crítica).
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Coluna de 15/12

A literatura mostra o barco da ordem, à deriva

Em 1984, um dos maiores teóricos da literatura brasileira, o maranhense, com formação em Pernambuco, Luiz Costa Lima, enfurnou-se na biblioteca da Universidade de Minnesota, nos EUA, onde lecionava, em busca de respostas para a complexa questão do registro da verdade coletiva feita na ficção do sujeito individual. Numa pesquisa exaustiva e paciente, descobriu que o controle do imaginário não era, como pensava antes disso, uma idiossincrasia da crítica literária brasileira do século 19. Mas que, ao contrário do que imaginara até então, o Renascimento nem sempre se caracterizou por uma coerente e permanente proposta de liberdade. Pois foram os iluministas franceses que estabeleceram uma nova forma de controle no lugar antes ocupado pelos autos-de-fé e pelo absolutismo real. Daí, foi um passo ele concluir que no Ocidente tem predominado uma linhagem racionalista, na qual o imaginário passou a exercer o papel antes desempenhado pela magia e pela fé religiosa.

Essa constatação levou o teórico a produzir um longo ensaio no qual aponta na legitimação do indivíduo, feita pelo escritor francês Michel de Montaigne no século das descobertas, o 16, o ponto de partida para a produção literária, tal como a concebemos hoje em dia. E, como porto de desembarque, a obra capital da literatura ocidental escrita quatro séculos depois desse primeiro passo, a do prosador Franz Kafka, judeu checo, que escrevia em alemão e que, a seu ver, inverteu esse “eu” de Montaigne, deixando este com ela, então, de ser um centro estável e passando a ser instável e disperso.

Entre essa saída e tal chegada, ele mostra como o filósofo alemão Emanuel Kant respondeu ao impasse estabelecido, a partir de Montaigne, de como resolver a questão da verdade, que é coletiva, dentro de uma nova ordem, a individual. Na passagem mais famosa da Terceira crítica , de Kant, o autor encontrou o título para a obra de fôlego que escreveu: Limites da voz (Montaigne, Shlegel, Kafka) . Lançado em dois volumes, em 1993, este livro, que se tornou um clássico da crítica literária brasileira com reputação internacional, foi reeditado agora, 12 anos depois, num volume só, pela Topbooks (444 pp., R$ 46).

A Lei, segundo Kafka - No terço final do livro, ao analisar (de forma original e brilhante) a narrativa kafkiana, o ensaísta explica como o romancista flagrou a obsolescência da resposta de Kant à aplicação da Lei como mecanismo de reconhecimento do sujeito individual na sociedade moderna. Kafka, como aparece na obra em tela, é um ficcionista à frente do tempo em que viveu. Pois, na primeira metade do século passado, foi capaz de perceber que a afirmação do espírito das leis, codificado pelos iluministas, se “desmantelou” e deixou de funcionar em nossos tempos, ditos “modernos”. Por isso, deduziu, a obra de Kafka é mais contemporânea nossa, nesta virada de século, do que dos leitores (e, de certa forma, até dos críticos) de seu tempo. Isso, segundo ele, se deve a uma combinação extraordinária da capacidade que o escritor tinha de compreender os mecanismos políticos com sua sensibilidade religiosa.

O gênio de Kafka não resulta, contudo, conforme Costa Lima, de uma capacidade extra-sensorial de vidente. Ele não foi um profeta, mas, sim, um ficcionista por excelência, tendo a capacidade que teve - e os analistas políticos, econômicos e sociais de seu tempo não tiveram - de perceber as conexões, nem sempre lógicas nem muito menos aparentes, mas sempre muito fortes, existentes entre o aparelho policial, o braço financeiro e a mentalidade religiosa.

Um barco à deriva - Como resumiu o especialista, de forma muito mais adequada do que o faria este resenhista, a respeito da segunda e da terceira partes de sua obra fundamental na teoria da literatura contemporânea (e não apenas a brasileira, diga-se, pois ele tem livros publicados em vários línguas): “com Kant, o pensamento da modernidade encontrara um sistema que, a partir do reconhecimento do poder do sujeito individual, concebera a vigência e legitimação de uma certa ordem do mundo; com Kafka, a questão se converte em mostrar que tal ordem já se tornara questionável; que as instituições que ela legitimara já se pareciam a um barco a adernar”.

Não há, entre os ficcionistas ocidentais que interessam, sejam reconhecidos como grandes ou tenham apenas tido sucesso comercial - do patrício Kundera ao discípulo Borges, de García Márquez ao desafeto deste Vargas Llosa, do velho Roth ao maduro Auster, do fascista Céline ao comunista Saramago -, quem não tenha sido passageiro desse barco à deriva que Kafka descreveu.

Lavrado em enciclopédica erudição, o texto de Costa Lima também é atualíssimo em relação ao que vivemos neste momento em que está sendo reeditado no Brasil, onde fazem sucesso os reality-shows na televisão a falsificarem a verdade pela banalização da intimidade. Além de contaminarem o debate político ditando as normas pelas quais se conduzem as investigações na moda das CPIs que tentam desfiar o novelo aparentemente infinito da corrupção dos agentes públicos.

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