JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL (clique no título da obra para ler a fortuna crítica).
Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor

Coluna de 22/12

Prosa e poesia convivendo no mesmo texto

Este ano, o prêmio anual da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) inovou ao apontar uma tendência que ganha corpo na literatura e abala a antiga distinção entre gêneros, que isola a prosa da poesia: um dos premiados deste ano pratica a mistura de um gênero com o outro, o que recebeu a denominação genérica de “prosa poética”. Ou seja, nem só prosa nem apenas poesia nem sequer poema em prosa, que já está consagrado, mas, sim, a mistura das características de uma e de outra, de tal forma que a alquimia final seja reconhecida como de boa qualidade, seja como uma, seja como outra. Em tempo, o ganhador do prêmio inusitado é o poeta e prosador gaúcho residente no litoral do Espírito Santo Carlos Nejar, autor de O poço dos milagres.

Não que seja inédito escritores se destacarem em ambos os gêneros. Ao pioneiro Homero, na Grécia antiga, são atribuídos poemas épicos Odisséia e Ilíada, lidos e adaptados na posteridade como se fossem romances de aventuras. O carioca Joaquim Maria Machado de Assis, tido e havido como o maior de todos os prosadores nacionais, também foi um poeta, se não em idêntica altura, pelo menos entre os maiores. Entre os contemporâneos, o alagoano Lêdo Ivo, que, ao contrário de Machado, é reconhecido como poeta de gênio (o colega pernambucano João Cabral de Melo Neto dizia dele ser “o maior lírico brasileiro”), tem uma obra de fôlego na ficção. Nejar, como Ivo e Cabral, também é mais reverenciado como poeta. Neste seu livro premiado de ficção, a habilidade de poeta serve para prender a atenção e mudar o ritmo da respiração do leitor: não a seqüência de fatos inventados nem mesmo o fluxo de consciência tornado canônico nesta era pós-James Joyce (inventor dos “bibelôs de Pandora” que compõem a prosa novelesca contemporânea), mas o encanto da palavra, seu ritmo, sua magia.

Do livro ao botequim – Na mesma via, mas em rumo oposto, o poeta, letrista e prosador paraibano Bráulio Tavares chegou bem perto desse ponto. Em curso por ele dado sobre lliteratura de cordel a professores de escolas públicas no Teatro Brincante, de Rosana e Antônio Nóbrega, ele defendeu a autonomia (deu até vontade de usar soberania) da narrativa como gênero à parte, não mais um subgênero da arte da escrita. Contar uma boa história, ele repetiu no Brincante, ao lançar o livro em que reproduziu suas aulas ( Contando histórias em versos , publicado pela editora paulistana 34), não é atributo exclusivo de prosadores de ficção, mas também de dramaturgos, cineastas, poetas épicos e de bancada (cordel), desenhistas de histórias em quadrinhos e de simples, mas impagáveis, artistas do gênero: os contadores de piada de botequim.

A crítica torce o nariz para Paulo Coelho, mas ele é o escritor que mais vende livros no mundo, recontando histórias: seu best seller O alquimista é um reconto de uma história repetida em várias culturas, entre as quais a árabe na célebre coletânea As mil e uma noites. O baiano Jorge Amado e o gaúcho Érico Veríssimo, cujo centenário de nascimento acaba de ser festejado, nunca foram propriamente unanimidades para a crítica como escritores, mas os leitores adoram o jeito com que eles passaram suas histórias para o papel.

Piadas e bolinhos - Ao contrário disso, as histórias contadas pela brasileira nascida na Ucrânia Clarice Lispector (caso de A paixão segundo GH ) são mínimas, quase inexistentes, embora sua prosa seja magnífica. O francês Marcel Proust construiu uma obra monumental – Em busca do tempo perdido -, não a partir de feitos, anedotas ou “causos”, mas das memórias relembradas e recriadas quando sentia o cheiro de madeleines sendo assadas no forno.

Se isso ocorria no lado da prosa, também na poesia os padrões canônicos têm sido desafiados. O francês René Carr e o português Fernando Pessoa elevaram ao pináculo a moldura indefinida dos poemas em prosa. Um dos maiores poetas do século passado, o portenho Jorge Luís Borges, propôs um desafio aos prosadores mais instigante que a derrubada das barreiras lingüísticas realizada pelo irlandês James Joyce: o fim da fronteira entre a verdade da erudição e a mentira da fantasia. Eis aí talvez a ficção do futuro. E a prosa poética de Carlos Nejar, recém-premiada pela APCA, é a vereda por onde podem transitar poetas com talento narrativo, caso do pernambucano Alberto da Cunha Melo, em Yacala, ou prosadores com língua musical, como a carioca Adriana Falcão, de Luna Clara e Apolo 11, o catarinense Deonísio da Silva, de Avante, soldados, para trás! e o paraibano Moacir Japiassu, de Quando alegre partiste.

Gabriel García Márquez e sua patota do “realismo mágico” latino-americano não nos ensinam que lógica e verossimilhança devem ser trocadas pelos encantos da fabulação? Pois! Para que estimular a rinha entre a prosa e a poesia se escritores consagrados como o argentino Julio Cortázar já registraram a ruptura de tais gêneros; se Lautréamont e Michaux revelaram um novo mundo só pela palavra; e se esses gêneros podem conviver bem no mesmo texto, como prova O poço dos milagres ? “Não residimos mais num gênero determinado, mas na linguagem”, diz o autor. E renegá-lo quem há de?

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