JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL (clique no título da obra para ler a fortuna crítica).
Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor

Coluna de 12/1

A graça da astúcia no olho arguto do repórter

O jornalista, escritor e acadêmico potiguar Murilo Melo Filho dedica seu mais recente livro, Tempo diferente, ao colega maranhense Josué Montello e aos próprios netos, Janaína e Bernardo. A dedicatória é relevante por revelar a gratidão pelo amigo que o estimulou a puxar pela memória para produzir o texto e o objetivo de deixar um registro para a posteridade, representando os descendentes em segundo grau o leitor do futuro ao qual é dado o privilégio de conhecer um Brasil e um tipo de brasileiro que, se ainda não foi extinto, deixou de ser representativo da maioria. Além disso, o autor transferiu para o papel um engenho, que na certa tem, de ser um bom papo, um vovô capaz de encantar com histórias pitorescas de sua experiência de vida e seu convívio.

Murilo é um remanescente da geração de repórteres políticos que cobriram o Congresso Nacional nos tempos da efêmera e saudosa democracia de 1946, dos Palácios Tiradentes e Monroe e dos míticos “anos dourados” sob a égide de JK, o “presidente bossa nova”, que agora volta à moda, mercê do talento de Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira, autores da minissérie sobre ele na Globo. Foi colega de bancada de Carlos Castello Branco, o "Castelinho", um dos perfilados por ele no livro, um autêntico mito da reportagem política e que deixou em colunas de jornal e livros uma obra consistente de acompanhamento da vida parlamentar na época lembrada e nos posteriores tempos atros da ditadura tecnocrático-militar. E também de Villas Boas Corrêa, ainda na ativa e autor da apresentação “Astúcia de repórter”, em que registrou com argúcia: “As biografias sucintas oferecem ao leitor a apresentação dos que desfilam com seus crachás, suas vitórias, insucessos, obras e realizações, até levá-lo à entrada da mina da novidade, da informação inédita e do detalhe desconhecido que o repórter catou no fundo do baú de meio século de militância”.

O bife cru e a corda bamba - O autor conviveu de perto com vários de seus personagens. Gozou da confiança do patrão na Tribuna da Imprensa , Carlos Lacerda, de quem fez um registro memorável. É iresistível a graça com que narrou episódio que testemunhou dando conta de uma visita de solidariedade ao polêmico jornalista e genial tribuno, agredido a socos a mando de inimigos. Entre os aliados e amigos que o visitaram, solidários, destacou-se a figura do brigadeiro Eduardo Gomes, duas vezes candidato (derrotado) à Presidência da República pelo partido de Lacerda, a UDN. Seu mutismo reduziu a silêncio o bulício dos visitantes até que se ergueu da poltrona, anunciando a retirada e um último conselho ao correligionário. O constrangimento foi geral para quem contava com uma relevante sentença política. “Por experiência própria, sei que nestes casos de rosto inchado é muito bom passar um bife cru”. E foi embora.

Murilo nasceu no Rio Grande do Norte, berço do titular de um brevíssimo mandato presidencial, o líder sindical natalense João Café Filho, que assumiu o poder na República com o suicídio do titular, Getúlio Vargas. Imposto pelo populista paulista Adhemar de Barros ao ex-ditador, não foi aceito por este e o interpelou duramente a respeito da chapa antes de um comício em Bauru. O gaúcho o convidou para o palanque, onde homologou a chapa e de onde partiram para uma incursão pelo interior do Paraná. Em Ponta Grossa, o candidato a presidente rememorou sua passagem anterior pela cidade, onde tinha recebido a notícia da renúncia de Washington Luiz num baile no qual convidara uma jovem para dançar. “Retirei-me da festa e nunca mais voltei a dançar... A não ser na corda bamba”, rememorou Getúlio. E olhou de soslaio para o candidato a vice, que, em 1937, às vésperas do golpe do Estado Novo, dissera que ele “dançava na corda bamba”. Nunca mais foram vistos juntos, mas, para surpresa geral, inclusive do vencedor para a Presidência, Café foi vice e sucedeu o suicida.

Mas os políticos não são os únicos protagonistas dos “causos” contados por Murilo em seu novo livro. Também são seus personagens grandes nomes da cultura nacional, como Alceu Amoroso Lima, Celso Furtado e Carlos Drummond de Andrade, que recebeu do autor a alcunha de “homem de ferro”, por causa do minério depositado no subsolo de sua terra natal, Itabira. Ele narrou, por exemplo, como se deu o desligamento do romancista baiano Jorge Amado do Partido Comunista Brasileiro, que exigia fidelidade ao realismo socialista sob a égide de Stalin na ficção. “Cumprir minhas tarefas qualquer um pode. Mas escrever os meus livros só eu posso”, justificou o autor de Grabriela, cravo e canela.

É o caso do livro aqui comentado: só Murilo Melo Filho poderia escrevê-lo. Mas, felizmente para todos nós, a qualquer mortal se permite a graça de lê-lo.

« Voltar