JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL (clique no título da obra para ler a fortuna crítica).
Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor
Coluna de 2/2
Um livro não é ruim só porque vende bem
O mercado editorial brasileiro está nos dando uma excelente oportunidade para comparar dois de seus produtos que se destinam a públicos diferentes — e talvez não seja exagerado definir como opostos -, embora tratem de um tema, se não idêntico, no mínimo muito semelhante. Nas prateleiras de Literatura Estrangeira das livrarias encontram-se, de um lado, um representante da legítima nobreza literária, o último lançamento do até hoje único Prêmio Nobel de Literatura em português, o comunista lusitano José Saramago, As intermitências da morte ; e, de outro, um livro que foi tão vendido no Hemisfério Norte que o símbolo maior do cinema como negócio, o americano Steven Spielberg, comprou os direitos e produziu uma versão para as telas do mundo, E se fosse verdade... , do arquiteto e ficcionista francês Marc Levy.
Se prevalecesse o senso comum, propagado pela crítica e aceito sem restrições pela parte mais letrada do público leitor, segundo o qual um autor respeitável, a ponto de merecer o maior galardão mundial, sempre escreverá textos superiores aos de um habitante do planeta dos mais vendidos da semana, ninguém duvidaria em apontar o primeiro como obra-prima e o segundo como mera expressão do lixo literário feito exclusivamente para enriquecer a indústria cultural. Uma leitura desapaixonada dos dois livros, contudo, poderá levar a uma conclusão que, além de não corresponder exatamente a esse preceito, ainda pode servir como indício de que esse tipo de comparação muitas vezes é apressada, sem propósito e, o mais grave no caso, preconceituosa.
A Indesejada em greve - Como foi escrito acima, o tema dos dois romances é igual ou muito semelhante, na tradição aberta na literatura ocidental por Luciano de Menipo e responsável pela mais consagrada obra-prima de nossas letras, Memórias pòstumas de Brás Cubas , de Machado de Assis: a morte, que o poeta Manuel Bandeira chamava de “a Indesejada das Gentes”. Aí, contudo, tem fim qualquer semelhança que possa haver entre um e outro. Assim como não há semelhança entre O ano da morte de Ricardo Reis , de Saramago, e outro ponto alto da literatura européia no século passado, A segunda morte de Ramón Mercader , escrito em francês pelo espanhol Jorge Semprún.
O português partiu de um ponto muito interessante para o leitor disposto a filosofar, ou não: a suspensão das atividades, que pode até ser definida como uma greve, da morte. De repente, não mais que de repente, num país de população pequena, ninguém mais morre. Contrariando a crença geral de que, sendo a extinção a única certeza da existência humana, a imortalidade deveria ser o “sonho de consumo” de qualquer mortal, o autor teceu uma trama instigante e verossímil para mostrar que a vida sem fim não seria o retorno do gênero humano às origens no Jardim do Éden. O romancista é convincente quando descreve as prováveis conseqüências funestas da perenização do sopro vital. Mas se perde do fio lógico da narrativa ao fazer concessões e se desviar num “nhenhenhém” anticlerical mais apropriado a um antigo, empoeirado e superado discurso marxista-leninista em voga no século XX completamente sem nexo em plena gobalização. Talvez não fosse uma crítica severa demais dizer que ele criou e abordou um bom tema e terminou de maneira magnífica (o capítulo final é magistral), mas, infelizmente, não evitou que o miolo do texto fosse mole.
Coma e eutanásia - O leit motiv do francês também é notável: a improvável, mas, ainda assim, verossímil, história de amor entre a alma de uma linda médica em coma num hospital e o arquiteto que alugou o apartamento onde ela morava antes de sofrer o acidente automobilístico grave que a imobilizou no leito. Como Saramago, Marc Levy concluiu seu texto com uma chave-mestra digna dos grandes autores. Mas, ao contrário de seu legítimo e consagrado colega luso, este não desperdiçou o fôlego preso do leitor em idiossincrasias que não são do interesse deste nem em inócuas deblaterações filosóficas sobre o poder temporal da Igreja ou a hipocrisia dos fariseus pós-modernos.
E se fosse verdade... cumpre toda a receita básica de um campeão de vendas. A história de amor comove sem ser piegas. E, no quesito verossimilhança, perseguido à risca por qualquer ficcionista que se preze, este livro em nada pode ser considerado inferior ao último lançamento do ganhador do Nobel. Este resenhista atreve-se até a garantir que o incrível namoro de um vivo e uma semimorta ganha mais foros de verdade, seja pela identificação da experiência do leitor com o entrecho, seja pelos lances de literatura médica e policial entranhados na narrativa, mais familiares ao leitor comum que as manobras políticas e mafiosas inseridas por Saramago no último lançamento de sua grife.
Sem pretender em nada reduzir a merecida glória do gênio português, a avaliação sem preconceito do profissional francês talvez possa vir a ser uma fórmula inteligente de aumentar o interesse do público pela arte literária, sem necessariamente ter de ceder aos apelos fáceis da subliteratura. É de bom alvitre renegar desde logo o equívoco pouco inteligente de imaginar que um produto do mercado editorial é menos nobre só por ser mais vendável.