JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL (clique no título da obra para ler a fortuna crítica).
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Coluna de 16/3

Bolas de cristal estilhaçadas

A eleição de outubro tem sido um permanente desafio a todos quantos se imaginem capazes de garantir previamente a decisão que cada eleitor vai tomar protegido pelo sigilo diante de uma urna. E, como sempre sói acontecer nesses casos, as bolas de cristal estão sendo inexoravelmente estilhaçadas.

Até maio do ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva era tido como pule de dez. Qualquer candidato da oposição estava convidado a apenas fazer a figura do perdedor certo, coonestando seu passeio nas urnas. Nem mesmo o flagrante escrachado do então subchefe da Casa Civil para Assuntos Parlamentares Waldomiro Diniz achacando um suspeito empresário da jogatina foi suficiente para alterar essa fé inalabável no vínculo indissolúvel entre o líder e seus liderados.

Aí veio o ex-amigo e terrorista suicida Roberto Jefferson reduzir a pó a primeira bola de cristal com uma bomba de efeito devastador. Dizendo-se caloteado pelo então poderoso chefe da Casa Civil (e antigo companheiro de quarto e chefe do citado Waldomiro), que ficara de lhe doar R$ 20 milhões e lhe entregou apenas R$ 4 milhões, denunciou um esquema inusitado na República brasileira de compra pelo PT da adesão de parlamentares para outras bancadas da base governista ou do voto favorável de alguns deles em assuntos de interesse do governo. Citado numa cena explícita de suborno (semelhante à protagonizada pelo ex-subchefe da Casa Civil) de um burocrata dos Correios, o presidente nacional afastado do partido aliado PTB delatou, em entrevista à Folha de S. Paulo e em vários depoimentos a CPIs e programas de televisão, a existência de um “propinoduto” operado pelo então tesoureiro do partido do governo, Delúbio Soares, e pelo obscuro publicitário mineiro Marcos Valério. O chamado “valerioduto” foi tema do noticiário político nos últimos sete meses e reduziu a cinzas o chamado “monopólio ético” dos petistas.

Tombaram, juntamente com o monopólio da moral, o comissário Dirceu e seus operadores no partido José Genoino, Sílvio Pereira e Delúbio Soares. Dirceu perdeu também seu mandato de deputado federal e o chefão de todos, Luiz Inácio Lula da Silva, variou de estratégia, mas permaneceu esquivando-se como pôde de qualquer relacionamento com os patrocinadores da lambança. Seus esforços e dons de malabarista não bastaram para evitar que o prestígio pessoal desabasse e as bolsas de apostas que o davam como vencedor virtual de uma eleição distante passaram a indicar-lhe o posto de bola da vez, a ser encaçapada pelos adversários.

Estes, contudo, trataram de devolver-lhe as esperanças perdidas numa série de mancadas dignas de nota. Primeiramente, descartaram a possibilidade de pedir o impedimento do presidente, aventado pelo presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato, quando a revelação da existência de contas externas de seu marqueteiro favorito, Duda Mendonça, lhes dava essa oportunidade de ouro, imaginando que veriam Lula arder na fogueira da Inquisição anti-corrupção até batê-lo nas urnas. Em segundo lugar, optaram, com a visão de fundo de quintal que caracteriza tucanos e pefelistas, salvar mandatos de companheiros como Eduardo Azeredo, senador pelo PSDB de Minas Gerais, mesmo Estado do deputado pefelista Roberto Brant. Da mesma forma como o PT e o presidente apostaram na ingenuidade e falta de memória do eleitorado, insistindo na tecla do desconhecimento das malfeitorias de seus chefiados, os oposicionistas tiveram a estulta ilusão de que esses mesmos cidadãos perdoariam seus correligionários usuários do “valerioduto” por alguma unção especial que os tornasse próceres acima de qualquer suspeita. Que tolice!

Certos de que Lula arderia mesmo na eleição, trataram de escolher o “vencedor virtual” entre o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e o prefeito da capital do mesmo Estado, José Serra. Enquanto de cima do palanque Lula anunciava uma bondade atrás da outra – do salário mínimo à operação tapa-buracos – os dois ilustres presidenciáveis tucanos atiravam farpas um ao outro, como se nem adversário tivessem. E quando a pesquisa CNT/Sensus, talvez de forma exagerada, mas certamente registrando uma tendência óbvia, mostrou que o favoritismo havia voltado a bafejar o chefe do governo, espernearam, esbravejaram e fizeram tanto barulho que terminaram jogando na segunda bola de cristal a bomba que a estilhaçou.

No momento a situação está no seguinte pé. Lula segue sozinho no palanque, fingindo que não é candidato, ao arrepio da lei eleitoral e diante do olhar impotente e indiferente da Justiça Eleitoral cumpre uma agenda que inclui, entre outros absurdos, a reinauguração da reforma do Aeroporto Internacional dos Guararapes em Recife. Com isso, vai firmando seu projeto de reeleição baseado numa versão oportunista do Pai Nosso – “venha a nós e ao vosso reino nada” -, na distribuição de benesses como o Bolsa Família e, sobretudo, se aproveitando da cizânia oposicionista, pois os tucanos não conseguem se definir. O prefeito Serra é o candidato mais competitivo, mas tem muito a perder. E o governador Geraldo Alckmin sente-se emparedado pela falta de opções à frente insistindo teimosamente numa candidatura que só prejudica os interesses do partido, da frente oposicionista e em último caso do próprio projeto pessoal.

É claro que o projeto de reeleição de Lula ainda terá de enfrentar uma barreira imensa e complicada: as imagens do “mensalão” – os discursos de Roberto Jefferson, os flagrantes de achaque de Waldomiro Diniz e Maurício Marinho, os dólares na cueca do assessor do irmão de José Genoino – e ela não será fácil de superar. Mas o discurso moralista – que o PT pretende enfrentar com o frágil argumento de que os adversários, dos quais se disse diferente para vencer em 2002, têm práticas iguaizinhas às dele, caso do caixa 2 – não bastará. A bem da verdade, a maioria da população brasileira não deve ter queixas muito profundas da gestão petista. E para superar essa evidência tucanos e pefelistas terão de encontrar um discurso alternativo, do qual ainda parecem bem distantes.

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