JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL (clique no título da obra para ler a fortuna crítica).
Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor
Coluna de 20/4
Nem tudo está perdido
Nossos heróis de verdade mantêm viva a esperança, apesar do medo
Duas notícias da semana passada chamaram a atenção pelo contraste. Num libelo acusatório claro, conciso e lavrado em vernáculo inteligível, plano e correto, o procurador-geral da República, Antônio Fernando Souza, acusou o PT, partido do qual é fundador o presidente da República que o nomeou, Luiz Inácio Lula da Silva, de haver cometido crimes para se manter no poder. Um dos 40 acusados no documento, o ex-deputado e ex-chefe da Casa Civil na gestão petista José Dirceu viajou em jatinho particular para Juiz de Fora, MG, onde esteve com o ex-presidente Itamar Franco, que lançou sua candidatura à Presidência da República pelo PMDB, que acaba de indicar em prévias outro nome para o posto, o ex-governador fluminense Anthony Garotinho.
Este e a ala oposicionista do partido desconfiam de que, de fato, o lançamento, previamente anunciado pelo ex-governador paulista Orestes Quércia, é um golpe da ala governista para evitar o surgimento de um postulante próprio do partido e assim este se possa engajar na campanha pela reeleição de Lula. Para o objetivo deste artigo pouco importa esclarecer se isso é verdadeiro ou não, pois aqui mais interessa o fato de o interlocutor de Itamar ter respondido com jactância à dúvida, natural, sobre a viagem feita num avião particular, sendo que não faltam escalas normais de linhas aéreas comerciais fazendo o trajeto São Paulo-Juiz de Fora. Sua ex-Excelência argumentou, com petulância, que este assunto é particular e que não deve satisfações a ninguém. Como não se conhece causa importante que tenha advogado, na profissão que diz exercer, pela qual tenha sido remunerado com quantia suficiente para lhe propiciar tal luxo, é o caso de questionar a origem dos recursos que o pagaram. E, se foi de graça, pior ainda: o que teria feito para justificar esse favor?
Em contraste com o desembaraço (que só aumenta à medida que os índices de favoritismo de seu candidato à reeleição se mantêm no topo das pesquisas) do comissário circulante, parâmetro óbvio da impunidade reinante, o documento que o incrimina, embora não seja sentença passada em juízo, mas mera peça acusatória, é um indício animador de que ainda há instituições que resistem à caradura ampla, geral e irrestrita. E brasileiros decentes capazes de fazer desafinar o coro dos acomodados (e desafiar o príncipe regente), como o é esse procurador. Não é decisivo (nem sequer suficiente) para enfrentar o crime que campeia, deslavado, corrompendo e abastardando os três Poderes republicanos. Pois ninguém cumpre pena nem sequer foi condenado no caso. Mas pelo menos uma instituição que resista ao cinismo generalizado já mostra existir alternativa à desesperança.
O procurador-geral vem se juntar aos 180 milhões de brasileiros que comem o pão amargo que o diabo amassou, mas não cedem à tentação de servir ao crime organizado, neste País que ainda não é dos bandidos, embora esteja, se não sob o domínio deles, no mínimo seu refém. E a alguns cidadãos decentes que pertencem à elite dirigente, mas não vivem a dizer amém por interesse ou covardia. Uma gente teimosa como Roseana Garcia, a viúva de Antônio Costa Santos, que renega, com coragem e riscos da própria vida e da filha adolescente, a aceitação passiva de que seu marido, que era então prefeito de Campinas e combatia a especulação imobiliária e o controle do tráfico de drogas sobre terrenos próximos ao aeroporto de Viracopos, tenha sido morto por acaso na véspera do dia em que o terror fez ruir as Torres Gêmeas em Nova York. Sem outras armas que não a própria convicção e a lógica plana, ela continua enfrentando o diagnóstico comodista e insatisfatório da polícia do governo estadual e a indiferença do federal.
Na verdade, a insensibilidade para o sofrimento e os perigos enfrentados por parentes de gestores públicos assassinados não é apenas do governo federal, mas de grande parte da sociedade. É incomum encontrar quem se comova com a situação do médico João Francisco Daniel, irmão mais velho de Celso Daniel, assassinado quando coordenava o programa da campanha do candidato petista Lula, em 18 de janeiro de 2002. Forçado a fechar a clínica de oftalmologia que teve por 30 anos e a viver escondido com medo dos figurões que suspeita terem mandado matar seu irmão, esse brasileiro não se conforma com a versão oficial (mais uma vez da polícia estadual, sob gestão do partido que faz oposição federal, e do outro, que controla a União), mantendo acesa a chama da dignidade e da verdade. A exemplo de seu irmão mais novo, Bruno, obrigado a levar a mulher, Marilena, e os três filhos para o exterior para evitar seu eventual extermínio.
Os verdadeiros heróis brasileiros são estes, e não o astronauta Marcos Pontes, transportado ao espaço sideral para flutuar à toa. Herói é o motorista Francisco das Chagas Costa, que testemunhou ter visto o então todo poderoso czar da economia na mansão suspeita dita República de Ribeirão Preto. E também o é o caseiro Francenildo Santos Costa, que, embora esteja sendo processado por lavagem de dinheiro e tenha tido sua vida devassada pelos esbirros da Polícia e da Receita Federais, nunca deixou de cumprir seu dever de cidadão de contar o que viu.
Para manter a esperança da Nação, estes heróis são obrigados a conviver com o próprio medo. É o caso da senadora Heloísa Helena (PSOL-AL), que anunciou em público ter alertado os filhos para o risco de se tornar uma vítima nada eventual da violência banal de nossas ruas, eles sabem que, protegidos pela impunidade e pela cumplicidade de amigões poderosos, seus inimigos, ameaçados por sua integridade moral, conspiram contra sua integridade física. Seu exemplo de decência demonstra que, apesar da desfaçatez e da insensibilidade dominantes, nem tudo está perdido.