JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL (clique no título da obra para ler a fortuna crítica).
Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor

Coluna de 4/5

O Mal banal e a caca ideológica

Há uma discussão inócua (et pour cause estúpida) a levantar uma poeira de polêmica em torno do filme alemão A Queda! As últimas horas de Hitler, de Oliver Hirschbiegel, que passou em circuito comercial nos cinemas brasileiros. A questão é: estará o cineasta fazendo propaganda subliminar do nazifascismo, ao humanizar a figura monstruosa do tirano brutal que eliminou 6 milhões de judeus em campos de concentração e foi o principal responsável por um conflito mundial no qual morreram 50 milhões de seres humanos?

Primeiramente, em que consiste essa humanização? O diretor é acusado de haver mostrado as oscilações de humor do ditador, entre as explosões de cólera contra seus generais e a forma carinhosa com que tratava uma cadela de estimação e as moças que preparavam sua comida cotidiana e datilogravam seus textos. Seria até o caso de comentar que o ex-pintor de paredes austríaco que assombrou o mundo com uma inesperada máquina de guerra construída sobre os escombros da Alemanha derrotada e humilhada no começo do século 20 na Primeira Grande Guerra Mundial não infringia os verbetes do manual de bom-tom preparado por ordem do secretário de Direitos Humanos do governo federal petista, Nilmário Miranda, o Politicamente correto. Afinal, era abstêmio (só bebia socialmente), antitabagista rigoroso e vegetariano zeloso. Se o caráter de uma pessoa pudesse ser medido por esse tipo de padrão, ele seria quase um santo. E tem muito idiota aí capaz de julgar seres humanos por esses critérios míopes, caolhos e imbecis! Do ponto de vista das relações humanas, se Hitler era capaz de mandar fuzilar um general por uma bobagem e, depois, convencido do contrário, entregar-lhe o comando (como fez com Heidling, a quem retirou da frente do pelotão do fuzilamento para pô-lo no comando da defesa impossível da capital do 3º Reich), sabia também ser afável com os mais humildes, como a bela e jovem secretária em cujo depoimento dado num documentário o filme foi baseado. Sentar-se à mesa com esses subordinados mais simples e agradecer, gentilmente, a boa comida servida não fez de Hitler um campeão da humanidade nem das boas maneiras. Certo?

Ao contrário do que imagina quem se preocupou com essa humanização do monstro por excelência do século 20, a humanização do demônio é, na verdade, a melhor contribuição que um narrador pode dar para o entendimento perfeito do fenômeno absurdo que foram as experiências totalitárias européias na metade do século passado - começando pelo fascismo de Mussolini e pelo nazismo alemão e terminando no Arquipélago Gulag do Império Comunista, construído pelo fervor também brutal do georgiano Josef Stalin. O único meio de evitar a repetição do Mal representado por essas ditaduras é reconhecê-las como resultantes da humanidade, e não frutos da desumanidade. Hitler era mau exatamente porque era humano, e não por ter sido desumano. Convido o leitor que duvidar dessa afirmação a fazer uma leitura básica para o entendimento do que foi o século 20: o livro Eichmann em Jerusalém, Relatório sobre a banalidade do mal, da filósofa judia-alemã (então radicada nos EUA) Hannah Arendt. Neste clássico das ciências sociais foi reproduzida a cobertura que a autora fez para a revista cult por excelência da intelligentsia nova-iorquina Esquire do julgamento do chefete nazista Adolf Eichmann, capturado pelo serviço secreto israelense (Mossad) em Buenos Aires, onde se escondia. Ao narrar o depoimento frio do criminoso de guerra, a professora concluiu, brilhantemente, que o Mal é banal: os 6 milhões de judeus executados no Holocausto não foram vítimas de carrascos desprovidos de humanidade, mas, sim, de burocratas insensíveis preocupados apenas com o próprio desempenho e as estatísticas capazes de provar a eficácia de seu serviço. Hirschbiegel reproduziu com fidelidade exemplar (impressiona, por exemplo, a semelhança física dos atores escolhidos com seus personagens reais) e grande talento narrativo, prendendo o fôlego do espectador (como recomenda Gabriel García Márquez), o ambiente sufocante do bunker de Hitler nos dias finais da Batalha de Berlim e do 3º Reich. E, mais até que o clima, o cineasta alemão conseguiu reproduzir o essencial da loucura nazista: seu absoluto desprezo pelo direito mais elementar do ser humano, a própria vida. Nesse particular, seu maior símbolo nem é o tirano, mas, sim, Magda Goebbels, mulher de Josef, o célebre ministro da Propaganda do regime. Serenamente, ela executou os seis filhos menores por julgar o mundo um lugar impróprio para eles viverem sem o nazismo e sem o Führer. Como este, a bela, elegante e fria suicida Frau Goebbels é o exemplo perfeito da banalidade do mal que, então, assolou a humanidade. E continua assolando. O resto é caca política e ideologicamente correta. Argh!